As transformações pelas quais a família brasileira vem passando têm implicações diretas na atuação do Ministério Público. Para discutir os arranjos familiares não-tradicionais e os novos desafios que eles trazem às Promotorias de Família, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) organizou o simpósio ”Questões Polêmicas da Parentalidade”. O evento, realizado nos dias 14 e 15 de agosto, teve a participação de promotores e procuradores de Justiça, além de servidores que atuam nas áreas jurídica e psicossocial.
A juíza Vanessa Aufiero da Rocha, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), veio ao MPDFT para apresentar a “Oficina de Pais e Filhos”. O projeto, idealizado pela magistrada na comarca de São Vicente (SP), é um programa educacional que pretende auxiliar famílias que estejam vivenciando uma situação de divórcio. Em uma sessão de quatro horas, são apresentados os conflitos mais comuns e exemplos de boas práticas na administração de divergências. A juíza explica que o principal objetivo da oficina é harmonizar as relações familiares, mas que outros resultados positivos também podem ser percebidos. “Entre as pessoas que passam pela oficina, a quantidade de acordos chega a 70%, enquanto a média é de 50%”, avalia.
Toda a família comparece à oficina no mesmo dia, mas há grupos separados para pais e para filhos. Neles, são discutidos os papéis de cada um na nova situação familiar, os conflitos mais comuns e formas positivas de resolvê-los. Os pais aprendem que algumas atitudes, mesmo bem intencionadas, podem prejudicar os filhos: dificultar o contato do ex-cônjuge com a criança, induzi-la a tomar partido ou permitir que ela presencie discussões agressivas podem causar ansiedade, estresse e tristeza.
Diferente de uma palestra tradicional, o projeto investe na emoção para transmitir sua mensagem. “Estamos lidando com pessoas em um momento delicado de suas vidas. A forma mais efetiva de mobilizá-las é por meio do sentimento”, explica a magistrada. Esse efeito é obtido principalmente por meio de dinâmicas e de vídeos. Essas atividades levam os pais a refletir e a se colocar no lugar da criança. Cenas de novelas, animações em curta-metragem e vídeos especialmente criados para a oficina discutem alienação parental, comunicação não-violenta, aprendizagem não-verbal e outros temas relacionados. O depoimento emocionado de uma jovem de 20 anos que fala sobre a forma como vivenciou o divórcio dos pais é uma oportunidade para que homens e mulheres reflitam sobre os danos que podem causar aos filhos por não saberem conduzir a nova situação familiar. “Um dos objetivos da oficina é fazer os pais assumirem suas responsabilidades e compreenderem que todas as atitudes deles têm repercussões na vida dos filhos, sejam boas ou más”, a juíza esclarece.
A oficina dos filhos tem uma proposta diferente. Ela pretende ser um espaço seguro para que as crianças e os adolescentes expressem seus sentimentos sobre o divórcio dos pais e possam discutir estratégias para lidar com os momentos difíceis. Para as crianças, as atividades são principalmente lúdicas, como desenho, pintura e outros trabalhos manuais. Os adolescentes participam de grupos de discussão em que podem compartilhar suas experiências e recebem orientações, por meio de vídeos e dinâmicas, sobre a melhor forma de proceder diante do conflito dos pais.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pretende levar a experiência de São Paulo a todo o Brasil. No Distrito Federal, as Varas de Família de Brasília iniciaram uma oficina-piloto que já está em sua terceira edição. Ela acontece duas vezes por mês e, por enquanto, atende apenas os pais. A promotora de Justiça Ana Paula Tomas Ferreira coordena, no MPDFT, a implantação do projeto e acredita que os resultados serão positivos. “Nossa expectativa é conseguir a pacificação do maior número de famílias em conflito”, explica.
No dia 22 de agosto, às 14h, o projeto será apresentado a promotores de Justiça, defensores públicos e advogados. O evento acontece no Fórum Leal Fagundes e é aberto a profissionais que se interessem em atuar como voluntários. A ideia é que, em breve, seja possível estender as oficinas às regiões administrativas do Distrito Federal.
O espaço do afeto
Famílias podem ter diversos formatos. Esse não é um aspecto novo das relações humanas, mas ainda provoca reações de estranhamento. Para discutir as múltiplas possibilidades de arranjos familiares, a promotora de Justiça Priscila Machado, do Ministério Público do Estado de Rondônia (MP-RO), ministrou a palestra “Multiparentalidade: diversidade e felicidade”. Ela acredita que os operadores do Direito devem ser mais sensíveis aos aspectos afetivos das relações familiares: “a família é fundada no afeto e esse fato da vida não pode ser ignorado”.
Priscila Machado atuou no caso que obteve a primeira sentença de reconhecimento de multiparentalidade no Brasil. Com a decisão, passaram a constar da certidão de nascimento da criança o nome do pai e da mãe biológicos, do pai socioafetivo e dos avós, tanto biológicos quanto socioafetivos. Esse fato exemplifica, segundo a promotora, a consagração normativa do afeto. “A sociedade anda e o profissional do Direito deve acompanhá-la. No passado, por exemplo, a exclusão dos filhos nascidos fora do casamento era legal e aceitável. Hoje, esse tipo de prática é impensável”, compara.
Leis e decisões judiciais mais recentes têm confirmado o status da família como lugar de realização do afeto. A Lei da Adoção, a Lei Maria da Penha e a legislação previdenciária, entre outras, são exemplos dessa nova forma de conceber os arranjos familiares. O Código Civil, em seu artigo 1.593, reconhece o parentesco por “consaguinidade ou outra origem”, o que, segundo a promotora, cria uma “claúsula geral de inclusão”, e coloca no mesmo patamar as filiações biológica, presumida e socioafeitva.
As relações socioafetivas, embora sempre tenham existido no cotidiano das famílias, somente passaram a fazer parte do horizonte normativo com a possibilidade legal de rompimento do casamento — o divórcio, institucionalizado no Brasil em 1977. De lá para cá, muita coisa mudou. “A evolução da jurisprudência chegou ao ponto de entender que, embora um exame de DNA possa negar a paternidade biológica, o vínculo socioafetivo existe e deve ser reconhecido”, afirma Priscila Machado.
Momento para refletir
O simpósio foi organizado pela Promotoria de Justiça de Família, com o apoio da Comissão de Aperfeiçoamento de Membros (CAM), sob a coordenação da promotora Aymara Borges. O objetivo foi trazer para o Ministério Público discussões contemporâneas na área de Direito de Família. “Precisamos nos aprimorar para a realidade do nosso tempo. Hoje, as famílias se apresentam como mosaicos e o Ministério Público deve estar preparado para atender essas novas demandas”, avalia a promotora.
Os participantes aprovaram a iniciativa. A analista processual Fernanda Cavalcante Costa, lotada na Promotoria de Justiça de Família, acredita que o contato com novas ideias e formas de solucionar conflitos é fundamental para sua atuação. Ela ficou particularmente interessada na Oficina de Pais e Filhos. “É um projeto inovador que apresenta uma solução efetiva para o problema”. A também analista processual Giovana Carvalho concorda: “Pela apresentação, percebemos que funciona na prática”, opina. A procuradora de Justiça Ruth Kicis acredita que o debate sobre as mudanças na família brasileira é fundamental. “Ainda há muita polêmica e as consequências de todas essas transformações precisam ser bem avaliadas”, pondera.