A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 iniciou uma nova etapa no processo de redemocratização brasileiro. Liberdades e garantias foram conquistadas, novas instituições passaram a existir. Para fiscalizar o cumprimento da lei e garantir a proteção de direitos, surgia também um novo Ministério Público.
Manhã de terça-feira, 12 abril de 1988. Com 350 votos favoráveis, 12 contrários e 20 abstenções, encerrava-se a sessão da Assembleia Nacional Constituinte. Ulysses Guimarães levantou os braços e disse: “Graças a Deus! Até que enfim votamos o texto do Ministério Público”. Procuradores e promotores de Justiça ficaram de pé e aplaudiram.
A partir daquele momento, o Ministério Público passava a fazer parte da Constituição Federal como instituição permanente e instrumento de defesa dos interesses sociais. A cena é uma das memórias mais caras à então promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) Elza Lugon, hoje aposentada.
Ela participou ativamente da movimentação no Congresso Nacional durante os debates sobre o texto relativo ao Ministério Público e avalia que a autonomia conferida aos procuradores e promotores foi a principal conquista da instituição. “Hoje, o limite para o membro do Ministério Público é a sua consciência profissional e a lei”, afirma.
Para o desembargador Diaulas Costas Ribeiro, que foi membro do MPDFT até 2016, a Constituição de 1988 foi um divisor de águas. “Dentre as conquistas do Ministério Público brasileiro no último século, nenhuma pode ser comparada a sua desvinculação do Poder Judiciário e do Poder Executivo, com o fim da atividade de representação do Estado”, afirma. E reflete: “Igualmente, nenhuma conquista pode ser considerada definitiva”.
Anteprojeto
Na obra “Introdução ao Ministério Público”, Hugo Nigri Mazzilli conta que, em julho de 1985, o governo federal nomeou um grupo de notáveis, com 50 integrantes, que apresentou um anteprojeto de texto constitucional. Era a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, que ficou conhecido como “Comissão Afonso Arinos”, em homenagem a seu presidente.
“Enquanto isso, o Ministério Público também se mobilizou”, relata. Duas iniciativas foram importantes nesse processo: o VI Congresso Nacional do Ministério Público e a aprovação da Carta de Curitiba, durante o I Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e Presidentes de Associações de Ministério Público, realizado em junho de 1986.
De acordo com Diaulas, “a Comissão Afonso Arinos tinha uma composição eclética sob os aspectos ideológico e profissional. Incluía desde o escritor Jorge Amado — que foi Constituinte em 1946 —, empresários, religiosos cristãos e não cristãos, católicos e evangélicos, sindicalistas, até juristas conceituados, como Miguel Reale e Afonso Arinos”.
Apesar de o anteprojeto da comissão não ter sido enviado ao Congresso, segundo o desembargador, as mudanças relacionadas ao Ministério Público que constavam do texto foram aprovadas em sua maioria. Entre elas estavam a autonomia administrativa e financeira e a dotação orçamentária própria, além da eleição dos procuradores-gerais de Justiça entre os integrantes da carreira.
Também foi atribuída ao Ministério Público a defesa do regime democrático – o que, de acordo com o jurista, foi copiado da Constituição Portuguesa de 1976 –, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Por outro lado, a defesa do Estado nos tribunais passou a ser responsabilidade de novas instituições, como a Advocacia-Geral da União (AGU).
Outras atribuições não mudaram tanto. O desembargador explica que, no processo penal, o Ministério Público brasileiro atual é quase o mesmo estabelecido no Império, na Primeira República ou nas ditaduras do Estado Novo e do Regime Militar. “As razões para essa inalteração estão na origem histórica do Ministério Público e suas ligações com o Poder Judiciário e o Poder Executivo. Na Constituição de 1891, o procurador-geral da República era um dos ministros do Supremo, que era nomeado pelo presidente da República”, afirma.
Entrevista: A emancipação do Ministério Público
Em entrevista, o advogado José Paulo Sepúlveda Pertence lembra as alterações ocorridas no Ministério Público com a Constituição de 1988 e as dificuldades para implantá-las. Ele foi promotor de Justiça no MPDFT, procurador-geral da República durante a Constituinte, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e relator do capítulo do Ministério Público na Comissão Afonso Arinos.
MPDFT — Qual o principal avanço do Ministério Público com a Constituição de 1988?
Sepúlveda Pertence – A Constituição de 1988 recuperou a separação de poderes e aperfeiçoou as garantias, não apenas de independência formal, mas financeira e administrativa. No começo, o Ministério Público era um órgão burocrático do Poder Executivo. Com a Constituição de 1934, conquistou um mínimo de identidade institucional, com a exigência da carreira e concurso público. Com a Constituição Federal de 1988, no entanto, deu um salto excepcional.
MPDFT — Como foi a polêmica no debate sobre as novas atribuições do Ministério Público?
Sepúlveda Pertence — Um ponto polêmico nas discussões anteriores à Constituinte foi a libertação do Ministério Público das funções de advocacia da União. Era um dilema dramático e cotidiano da instituição, personificado inclusive no procurador-geral da República. Ele era, ao mesmo tempo, chefe do Ministério Público, de quem se reclamava independência e distância em relação ao governante, e chefe da AGU, o que implicava uma estreita solidariedade com o governo.
MPDFT — Como foi superado o obstáculo?
Sepúlveda Pertence — Para a defesa da União, organizou-se a AGU, com um corpo (de funcionários) dedicado exclusivamente a essa função. Creio que, hoje, mesmo os mais apaixonados defensores da continuidade dessa dupla função hão de reconhecer que essa foi uma mudança importante. Libertou o Ministério Público das amarras da solidariedade com o governo. O Ministério Público de hoje é incomparável com aquele do qual participei no início de Brasília.
MPDFT — Nas discussões da Assembleia Constituinte, houve muita resistência às mudanças no Ministério Público?
Sepúlveda Pertence — Houve resistências ideológicas e corporativas, o que é natural. Havia pontos de atrito na incorporação dos Ministérios Públicos estaduais, por exemplo. Houve ciúme, guerras declaradas ou não. Lembro-me, um dia, em que entrou no meu gabinete o ex-advogado-geral da União Álvaro Augusto, que era presidente da Associação dos Procuradores da República. Ele dizia que havia chegado a paz. E me apresentou um verdadeiro livro da Constituição, com capítulos, seções, tudo sobre o Ministério Público. Respondi que ficava feliz pela paz, mas afirmei que, naquele projeto de Constituição, estava faltando um artigo: “O Ministério Público manterá relações amistosas e preferenciais com a República Federativa do Brasil”, porque aquela era uma Constituição de uma potência, e não de uma instituição.
MPDFT — O Ministério Público passou a ser o porta-voz da sociedade?
Sepúlveda Pertence — É claro. Na verdade, isso se traduz não apenas nas funções tradicionais, no processo penal e na curatela dos indivíduos desprovidos nos processos particulares, mas nos processos coletivos. O papel que o Ministério Público assumiu foi de defensor dos direitos da coletividade.MPDFT — A instituição também passou a ser a principal defensora das causas coletivas?
Sepúlveda Pertence — Sim, com os chamados direitos difusos, os direitos do meio ambiente, do consumidor e do patrimônio histórico. Esses eram direitos que existiam, mas que, em relação a cada pessoa, eram de tão difícil mobilização que acabavam sendo direitos puramente retóricos. O Ministério Público assumiu a subjetividade desses direitos. Essa me parece a grande revolução que se fez. Começa com a criação da Lei de Ação Civil Pública, no governo Sarney, cuja sanção foi a primeira batalha que tivemos de enfrentar na Procuradoria-Geral da República, mas que ganha outra fortaleza com a Constituição.
MPDFT — Quais são os maiores desafios para o Ministério Público?
Sepúlveda Pertence — Havia uma disputa de espaço entre o Ministério Público e as corporações policiais, que também ganharam um status constitucional relevante. O que complica muito é se existe e até onde vai o chamado poder investigatório do Ministério Público. Estou convencido de que é necessário construir uma base de legitimação desse poder investigatório. É preciso uma disciplina na investigação do Ministério Público para que o investigado, o indiciado, não tenha menos garantias do que tem no inquérito policial.Adaptado da Revista MPDFT Memória n. I
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