Para comemorar os 60 anos do MPDFT em Brasília, serão republicadas, até o fim de abril, matérias históricas sobre o trabalho da instituição. A quarta matéria da série, publicada na Revista Memória nº 2, em 2009, mostra como era o dia a dia dos membros do MPDFT que atuavam nos antigos Territórios Federais.
A aventura de trabalhar nos Territórios
As inovações introduzidas pela Constituição de 1988 transformaram a realidade política do país. O novo texto alterou as divisões político-geográficas e os antigos Territórios tornaram-se Estados, o que modificou a atuação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Hoje trabalham na instituição seis membros que atuaram nos Territórios: os procuradores de Justiça Carlos Eduardo Magalhães e Marta Maria de Rezende e os promotores de Justiça Gladaniel Palmeira de Carvalho, Romualdo Covre, Conceição de Maria Pacheco e Paulo Batista Gomes.
Em Roraima, muitas dificuldades
Antes da promulgação da Carta Magna, os promotores MPDFT atuavam nessas regiões essencialmente como representantes da Justiça, conta o procurador de Justiça Carlos Eduardo Magalhães de Almeida, que foi promotor no Território de Roraima: “Nos Territórios, exercíamos toda a atividade do Ministério Público Estadual e Federal. Nos Territórios Federais, era o nosso Ministério Público quem fazia as vezes de Ministério Público Federal, com todas as incumbências, inclusive a Advocacia da União. Quando respondi pelo eleitoral (não havia remuneração), só havia um código que servia a mim e ao juiz. O livro sempre acompanhava os processos, para que fizéssemos os nossos trabalhos.
Em Roraima, onde fui designado coordenador pelo então procurador-geral de Justiça, Geraldo Nunes, recebíamos apoio do governo local. Instalações físicas, funcionários, carro, motorista, tudo era cedido pelo governo. O nosso Ministério Público nos abastecia com máquinas de escrever manuais e papel. Naquela época, a comunicação com Brasília era feita por telex ou telefone. O Diário Oficial só chegava com quase quarenta dias de atraso, via malote.
A energia elétrica era constantemente cortada. Éramos abastecidos por termoelétrica. Em Caracaraí, circunscrição judiciária que respondia por todo o sul do Território, a luz era cortada por volta das 20h. Valente foi o nosso colega e grande amigo Paulo Batista, que, sozinho, exercia as atividades ministeriais naquele lugar.
Na época do Plano Cruzado, fui obrigado a fazer compras de gêneros alimentícios em Santa Helena, na Venezuela. O nosso governo, quando tabelou os preços, esqueceu-se de acrescentar o custo do frete às mercadorias que iam para aquele longínquo Território.
Mas nem tudo foram dificuldades, também tivemos muitas alegrias. Fomos sempre bem tratados pela população local e tenho, de lá, excelente recordação. Sou grato àquela gente.”
Nas manchetes
A procuradora de Justiça Marta Maria de Rezende, que também atuou em Roraima até 1988, lembra que os Territórios eram administrados pelas Forças Armadas, que tinham a incumbência de interiorizar e integrar a Amazônia Legal. Roraima era administrado pela Aeronáutica, o Amapá, pela Marinha, e Rondônia, pelo Exército.
Diz a procuradora: “Nosso salário era pequeno, trabalhávamos em uma salinha do Fórum e todo o material de trabalho nos era doado pelo governo do Território. A gente não tinha códigos, não tinha biblioteca, tinha que se virar. Trabalhávamos com nossos próprios livros. Mas a falta de estrutura não impedia o exercício da profissão. Com o pouco que tínhamos, era preciso representar a sociedade e zelar pela nossa instituição”.
Doutora Marta, como ficou conhecida, foi também foi titular das Promotorias Especiais do Meio Ambiente e do Consumidor, criadas em 1987, e implantadas por ela no Território de Roraima. Foi um marco importante, porque, no Território, àquela época, o desrespeito às leis era comum.
É ela quem conta: “Na inauguração da Promotoria do Consumidor, realizamos, juntamente com a Polícia Federal e os órgãos que atendiam o consumidor, como saúde pública, Sunab e Inmetro, uma blitz no comércio local. Todos os comerciantes fecharam as portas de seus estabelecimentos em protesto contra a nova Promotoria do Consumidor. No outro dia, saiu estampada no jornal uma foto da promotora sorrindo, com a manchete ‘Polícia Federal Garante o Sorriso da Promotora’. Por causa das atuações nas Promotorias do Meio Ambiente e do Consumidor, fui perseguida e, inclusive, ameaçada de morte. Por esse motivo, minha remoção para o Distrito Federal foi antecipada.”
No Amapá, os mesmos problemas
O promotor de Justiça Gladaniel Palmeira de Carvalho, que atuou no Território do Amapá, confirma que a situação lá era idêntica à de Roraima. Diz ainda que a falta de estrutura ocasionava episódios delicados. “Certa vez, fui a uma cidade e a primeira-dama arcou com as despesas da viagem e ainda providenciou hospedagem. Horas depois, era preciso impetrar uma ação contra ela”, relembra Palmeira. “Era um trabalho muito difícil.”
Ele lembra a importância do trabalho realizado nos Territórios. “O Ministério Público dos Territórios Federais, por intermédio de seus membros, cumpriu a missão de levar o Direito a um Brasil esquecido. Assim, é importante lembrar que a posição de relevo de que o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios goza na Constituição da República é fruto da indivisibilidade da instituição, ou seja, da promoção de Justiça além da capital da nação brasileira”.
Todos juízes
A promotora de Justiça Conceição de Maria Pacheco Brito atuou no Território Federal do Amapá entre os anos de 1983 e 1991, quando foi removida, a pedido, para a Capital da República.
“Éramos uma espécie de ‘clínico geral’ e servíamos a todo o Território com seus municípios longínquos e de difícil acesso. Muitas vezes saíamos em comitiva (juiz, promotor, defensor público e servidores da Justiça) para realizar as sessões do Tribunal do Júri e levar a Justiça àqueles municípios. Passávamos vários dias na localidade atendendo aquele povo tão carente que desconhecia o que era e o que fazia o Ministério Público e, não raras vezes, confundia o promotor de Justiça com o Juiz. Para o povo, éramos todos juízes.
O acesso aos municípios era precário, as estradas eram de terra e com muitos buracos. O acesso ao município de Mazagão, a 200 km da capital, era por meio de balsas, porque era preciso atravessar os rios Matapi e Vila Nova. Em várias ocasiões ocorriam problemas de manutenção em uma das balsas. Tínhamos que deixar o carro na margem e atravessar o rio por meio de “montaria” (uma espécie de canoa pequena e estreita, movida por remos) para chegar à outra balsa. Entre as duas balsas, havia ainda uma pequena estrada, também de terra.
Mas nem tudo eram espinhos, havia os bons e gratificantes momentos, como o de levar a Justiça e o conhecimento de seus direitos até aquele povo sofrido e carente de tudo; o entrosamento e a amizade que fazíamos nessas viagens, inclusive como o povo nativo, que nos recepcionava com alegria e generosidade.
O promotor de Justiça no Território do Amapá, ao lado do Juiz, era considerado autoridade máxima da Justiça. Era altamente respeitado pela sociedade e, por isso, presença quase obrigatória nos eventos sociais.
Apesar da carência de material e da falta de acesso aos informativos e livros jurídicos, conseguíamos desenvolver nossas atividades a contento. Assim, posso dizer, com orgulho, que cresci pessoalmente e profissionalmente naquele Território do Amapá, que considero minha segunda terra natal.”
Sem arrependimento
Era dezembro de 1983. O promotor de Justiça Romualdo Covre, então com 27 anos, desembarcava em Macapá pela primeira vez. “Depois de um voo cansativo, com várias escalas e conexões, cheguei a Macapá. Apesar dos sonhos e idealismo de minha juventude, o primeiro impacto não foi muito agradável. Para mim, a visão de Macapá e, principalmente, do próprio Ministério Público, sem qualquer infraestrutura e condições precárias de trabalho, foi decepcionante. Quase voltei para casa. Cheguei a pensar que não receberia o salário. Como o dinheiro chegaria em local tão longínquo? Estava vivendo o ‘apocalipse now’ de minha vida. Entretanto, graças a Deus, tudo passou. Comecei a trabalhar, inicialmente como defensor público, fiz amizades e criei uma rede de relacionamentos, minimizando assim o sofrimento pela saudade dos amigos e da família. Era solteiro.
Minha primeira viagem para a cidade de Amapá, distante aproximadamente 300 km de Macapá, foi de ônibus. Quase 10 horas de viagem. Chovia tanto que, como se diz por lá, ‘urubu escorrega do galho’. No meio do caminho, o ônibus atolou no barro, tivemos que descer e ajudar a empurrar, cheguei todo enlameado. Certa vez viajei, em pé, na carroceria de um caminhão.
Fui coordenador do Ministério Público naquele Território do Amapá de março de 1986 a dezembro de 1990, promotor de Justiça Eleitoral por vários anos, atuei na defesa dos interesses da União em reclamações trabalhistas, sempre cumulando com as minhas funções de promotor de Justiça.
Em janeiro de 1991, fui cedido ao Ministério Público do recém-criado Estado do Amapá, onde, com muita honra e orgulho, exerci as funções de Procurador-Geral de Justiça pro-tempore, organizando o estatuto e presidindo o primeiro concurso para ingresso na carreira do Ministério Público Estadual.
Em maio de 1992, retornei ao MPDFT. A atuação no Território foi uma experiência incomensurável para o meu desenvolvimento pessoal e profissional. Não me arrependo de nada, faria tudo novamente.”
Em 11 anos, uma vida
O promotor de Justiça Paulo Batista também trouxe muitas recordações de sua época no Território de Roraima. “Numa segunda-feira de junho de 1980, recebi um bilhete da Varig com destino a Boa Vista, com 12 horas de escala em Manaus. Minha bagagem era uma grande mala com livros, poucas roupas e um violão. Fui recebido, à noite, pelas pessoas de quem me tornei grande amigo, Dra. Zelite Andrade e seu esposo Rufino Carneiro. A Dra. Zelite, do meu concurso, tinha trânsito fácil no Território, pois é macuxi; foi embora para o Território de Rondônia e tornou-se, várias vezes, Presidente do Tribunal de Justiça do Estado.
Calculei que, após dois anos, estaria de volta ao Distrito Federal. Retornei somente em julho de 1991. Foram 11 anos de muita luta e muito trabalho, a princípio na Defensoria Pública.
Dentre as lutas, enumero as que travei contra o governo local, que entendia ser o Ministério Público um órgão sob seu comando, o que nunca aceitei. Depois, já promotor de Justiça, na defesa de causas indígenas. Tive algumas dificuldades dada a forte ligação que tinha com o bispo da Diocese de Roraima, Dom Aldo Mongiano. Em outras ocasiões, tive que ocupar todos os cargos sozinho: defensor, promotor e curador.
Naqueles 11 anos tive duas meninas roraimeiras, Lara Eugênia e Luiza Elena. Paulo Engels, de origem sulista, tinha nascido em São Paulo. Os nomes em “E” representam a minha fase socialista. Foi nesse barco que ajudei a fundar dois diretórios do PT, em Boa Vista e em Caracaraí.
Aproveitei o máximo da natureza amazônica, comi bastante peixe, conheci todo o Território, de Pacaraima (fronteira com a Venezuela) a Caroebe, de Bonfim (fronteira de Guiana) a Santa Maria do Boiaçu. Fui professor de nível médio, fui músico das missas de domingo, fui presidente da OAB-RR; deste último cargo tenho muito orgulho.
Embarquei de volta em julho de 1991, numa balsa com destino a Manaus, com o meu veículo dentro de um baú de uma loja de colchões. De Belém a Brasília suportamos a longa estrada. De Caracaraí ao PADF, onde havia adquirido uma chácara, foram 16 longos dias. Não me arrependo de nada, nem do que fiz nem do que não fiz. Deus é testemunha.”
O texto acima foi republicado na íntegra, conforme sua primeira divulgação, em 2009, na Revista Memória nº 2. Para ler essa e outras matérias sobre a história do MPDFT, clique e conheça a Revista Memória.
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