Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Eu tenho um amigo de infância, com quem ainda mantenho contato.O amigo não mora mais aqui e nos vemos, em média, uma vez por ano. A ele quero bem, é uma pessoa que tem muitas qualidades admiráveis, mas o aspecto mais conspícuo de sua personalidade é, infelizmente, um defeito: ele é somítico. Ou seja, pão-duro. Eu sei que é uma experiência torturante, para ele, sair para jantar. Uma refeição não serve apenas para saciar a fome que desafia a sobrevivência física; é também um pretexto para namorar, propor casamento, comemorar aniversários, colocar o papo em dia e transmitir mensagens sociais, em termos de status e poder (o tal ver-e-ser-visto).
Com o início da domesticação de animais, ficou estabelecida uma espécie de gênero e hierarquia nutricionais. "Tudo o que é humano é sexuado", sabia Ortega y Gasset. Também o sabia o antropólogo Marshall Sahlins, que relembra que as refeições estão baseadas na centralidade da carne (com apoio periférico de carboidratos e fibras), o que indica "força", "evoca o pólo masculino de um código sexual da comida". Foi a caça o distribuidor entre as tarefas domésticas e sociais; e isso não está morto. É pelo reconhecimento de algum mérito no sistema que vem das cavernas que, no Brasil de hoje, a licença-paternidade é de cinco dias, e a maternidade dura seis meses. Muitas mulheres tentam esticá-la ainda mais, juntando férias individuais, no que fazem muito bem.
Pela ordem na hierarquia alimentícia, aparecem boi, frango, porco, peixe (correm por fora carneiro, pato, avestruz e até rã), cavalo e cachorro. Na América, horrorizam o boatos de que os dois últimos são consumidos em certos países porque, aqui, os caninos se reproduzem sem restrições e depositam seus dejetos excrementícios nas ruas. Criadores se opõem com veemência a projetos de lei que determinam o uso de focinheiras em exemplares de determinadas raças. Em casa, onde têm nomes próprios, muitas vezes de gente, os cães sobem em sofás, dormem nas camas de seus donos e sentam-se à mesa sem o mais vago receio totêmico de que poderiam participar da refeição como pièce-de-résistance, não como comensais. Os humanos não têm esse receio tampouco, mas por motivos antropomórficos. Devorar o Kierke (o próprio cachorro de estimação) seria como quebrar o tabu do canibalismo.
Hoje em dia, caçar é um hobby visto como elitista e politicamente incorreto, condenado às galés por militantes ecológicos. A própria divisão da comida passou por certas elaborações, pois um banquete em que se oferece filé bovino é merecedor de mais prestígio do que outro em que é servido rabo de porco – embora um boi possa fornecer vários quilos de filé, e um suíno tenha um único rabo. E as mulheres passaram a achar que cozinhar para seus maridos, ou lavar os pratos em que esses comeram, são atos nefastos que as rebaixam em sua dignidade humana.
Voltando ao meu amigo: pessoas e coisas costumam ser assimiladas a partir de suas características mais evidentes, mesmo que não sejam as únicas, as mais profundas, ou mesmo as mais verdadeiras. Meu amigo é um mão-fechada, assim como Einstein certamente foi muitas coisas, boas e ruins, mas foi, acima de tudo, uma pessoa inteligente. Mozart e Da Vinci foram gênios. Cristóvão Colombo e Santos Dumont, inovadores. Gibbon era culto. Paul Getty, rico. Ivan, o Terrível, e Hitler, facínoras. Madre Teresa de Calcutá, abnegada. Confúcio, sábio. Gengis Khan e Napoleão, conquistadores. Xantipa era chata e Sharon Tate era bonita. Oscar Wilde, bicha. Rafael (do Polegar) e Amy Winehouse, drogados. Obama é negro.
Generalizando ainda mais, a Suécia é organizada e o Brasil não é sério, mas não é pior do que Serra Leoa, o próprio inferno na Terra. Música clássica é sofisticada, filosofia lógica, difícil, e rugby, violento. O direito, que deveria ser justo, é tido como incompreensível, pernóstico, lento, e até, quem diria, injusto.
Em tempo: Barack Obama não é negro. Ele é filho de negro com branca, e essa mistura não produz negros e sim mulatos. O novo presidente americano é mulato e não pode ser honestamente contabilizado de outro modo.
Jornal de Brasília