Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Se você quiser encontrar defeito nos trabalhos da Justiça, vai conseguir, sem grandes dificuldades. A qualidade das leis, a lentidão dos processos, a superficialidade, tudo pode ser objeto de questionamentos. Você pode ficar desapontado até com o acanhamento das salas de audiência, bem mais modestas do que as que aparecerem nos filmes e mais se assemelham a um ambulatório hospitalar, além de outros aspectos que nada tem de glamourosos.
Apesar de tudo isso, existe algo nobilíssimo gravado a fundo na ideologia jurídico- judiciária: a dignidade da pessoa humana. Levar alguém a julgamento e permitir que sua conduta seja avaliada com provas que pode refutar e, assim, ser absolvido. Significa dizer que ele mereceu ser tratado como titular de direitos a serem respeitados, em vez de fazer do procedimento uma encenação, uma cerimônia vazia para justificar uma culpa formada de antemão (em inglês, isso se chama 'show trial').Pior ainda é fuzilar o réu em um julgamento improvisado, sumário e irreversível, sem chance de se explicar para valer e de recorrer de uma decisão desfavorável. A rotina embaça a noção de que um julgamento não plasmado pela farsa nem pelo ódio é um momento bonito e civilizado, malgrado todas as suas imperfeições.
Na linguagem comum, 'ser alguém' é ser 'importante', valorizado pela sociedade. É ter um histórico familiar, estudo, colocação, prestígio, fama. É ser admirado pela aparência ou invejado por seus carros, roupas e mulheres. Para o direito, 'ser alguém' é compartilhar a experiência da humanidade a despeito de características pessoais, e poder ser vítima de assassinato, lesão corporal, roubo, calúnia. É ter o direito de ser vítima. Até um homicida pode ser vítima de homicídio. Quem tem número são os autos do processo; as pessoas têm nome e sobrenome.
Jornal de Brasília - 27/2/2019
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