Leonardo Roscoe Bessa
Procurador de Justiça do MPDFT
Walter José Faiad de Moura
Advogado
O Brasil, em que pesem inúmeros esforços, ainda possui destaque negativo em termos de qualidade e eficácia do serviço de prestação jurisdicional. No discurso teórico, diversas técnicas de processo civil se dispõem a dar solução mais rápida para grandes conflitos e tratamento uniforme a questões que se tornam repetitivas. Na prática, nosso jovem sistema de Justiça só tem sido lembrado por contingenciar, anos a fio, sentenças efetivas para lesões aos chamados direitos metaindividuais, particularmente os que afetam milhões de pessoas. O campo dos acidentes de consumo e das condutas abusivas de fornecedores revela litígios que não escolheram cor, classe nem o local onde nasce o cidadão. Entre cláusulas de obrigações bancárias absurdas, regulação anacrônica de serviços públicos importantes e até acidentes ambientais, o sistema de Justiça, embora lento, ainda é a única garantia de resposta para milhões de brasileiros afastados pela desigualdade socioeconômica.
A via jurídica mais conhecida do cidadão são as ações civis públicas (ações coletivas de consumo - ACPs). Nesse cenário, destacam-se boas iniciativas alternativas em direção à mediação e conciliação. A legislação e desejável cultura de um novo processo civil apontam para a lógica da uniformidade de entendimentos jurisprudenciais dos tribunais e do tratamento adequado às questões que envolvem os direitos coletivos. A coerência de respostas aos macrolitígios não é um fator exclusivo das cortes de uniformização. A eficácia territorial nacional de algumas sentenças proferidas em ACPs é, desde a década de 1980, uma solução operacional que funciona adequadamente e não deve ser eliminada. O Superior Tribunal de Justiça, por definição da Corte Especial, pôs fim ao interesse de grandes litigantes (bancos, autores de grandes danos de consumo...) em restringir as sentenças de ACPs apenas para o foro da comarca (ou seção judiciária) do juiz processante. O STJ pacificou o entendimento de que a decisão proferida na ação coletiva possui alcance nacional, obviamente quando assim a situação concreta exigir. Seguiu-se a doutrina amplamente majoritária que refuta interpretação literal e isolada da redação do artigo 16 da Lei 7.347/85 o qual, com nova redação em 1997, estabelece que a sentença coletiva procedente fará coisa julgada '(...) nos limites da competência territorial do órgão prolator (...).' A solução atual dominante prestigia a interpretação sistemática (diálogo das fontes) entre vários diplomas infraconstitucionais, com destaque para a Lei da Ação Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor e concluir que é da própria natureza do direito metaindividual (difuso, coletivo, individual homogêneo) o efeito erga omnes, ou seja, a vocação para afetar os beneficiados com a tutela independentemente do local onde estejam ou residam, obviamente para as situações que assim se colocarem.
Diferentemente de outras ações coletivas, as ACPs de consumo não têm sujeito determinável por relações prévias de associação de trabalhadores ou servidores públicos. Quando algum Ministério Público estadual ou entidade de defesa do consumidor ingressa com ação dessa natureza, ocorre a substituição de todos os afetados pela relação jurídica de base e, caso o demandado tenha causado prejuízos para além de uma única comarca, circunscrição ou seção judiciária, o sistema legal admite que a sentença da ACP ultrapasse tais fronteiras e, a depender do caso, tenha alcance nacional. Recentemente, a Febraban foi ao Supremo e tentou emplacar a tese de que as limitações do Tema 499 (RE 612.043/RG) se aplicariam a ACPs de consumo. O STF definiu que, em ações coletivas de servidores públicos, por exemplo, relacionadas a aumentos salariais, a sentença da ação coletiva estaria limitada territorialmente e apenas aos associados previamente, atentos à situação de 'representação processual'. No entanto, o Plenário deixou evidente que tais limitações não alcançam as ações regidas pela Lei 7.347/85, ao julgar e acolher os embargos declaratórios opostos pelo Idec. Nos debates deste julgado restou fulminada, ao final, a pretensão dos bancos. A aposta das instituições financeiras é gerar confusão sobre o Tema 499, do STF, tal qual ocorreu no julgamento do REsp 1.719.820/MG. Na tentativa de limitar indevidamente uma ACP ajuizada por entidade civil, o relator do caso, ministro Bellizze (STJ), foi atento ao apontar que 'não se aplica ao caso vertente o entendimento sedimentado pelo STF no Re n. 573.232/SC e no RE n. 612.043/PR, pois a tese firmada nos referidos precedentes vinculantes não se aplicam às ações coletivas de consumo.'
Agora, mesmo pacificada a questão sobre a eficácia subjetiva e territorial de decisões proferidas em ação coletiva de consumo, bancos voltam ao STF no Ag. Reg no RE 1.101.937, relatado pelo ministro Alexandre de Moraes. Novamente, Itaú e Caixa insistem na redução ilegal das ACPs de consumo, em feito que será no Plenário Virtual. A seguir a orientação vigente, a segurança jurídica e o legado das ACPs estão mantidos, em um sistema mais coerente e racional. Diante de eventual reversão, corre-se o risco do ministro Alexandre sinalizar para que cada um dos 26 estados, o DF e as cinco regiões federais recebam inúmeras ACPs sobre um mesmo tema. Afinal, em tempos de Brumadinho e Mariana, não é possível que para cada estado que a lama turvar os rios haja uma ACP diferente.
Correio Braziliense - 25/3/2019
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