Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
"Títulos, supostamente, identificam nossas habilidades. Na verdade, servem para impressionar aqueles com quem mantemos contato"
George Gaylord Simpson
Na semana passada, eu falava sobre um colega de trabalho, o Georges Carlos. Fazia uma brincadeira com seu nome, dizendo que era muito pomposo etc. Mas a coisa que mais me chama a atenção nele não é nem o nome, e sim a aparência, porque o Georges é parecido com um amigo meu de infância, o Badão. Todas as vezes que me encontro com o Georges, eu penso, "olha o Badão". E, menos de um segundo depois, corrijo a mim mesmo, "Badão nada, é o Georges".
Estou dizendo isso a propósito daquilo que chama a atenção imediata pelo sentido (visual, no caso), ou o óbvio, o que "está na cara". Leio em Nelson Rodrigues: "Eu, se fosse banqueiro, emprestaria dinheiro pela cara. Tudo o que nós temos, de sublime ou de vil – está na cara".
Nelson exagera, é claro, mas a essência da idéia é válida. Já ouvi muitas e muitas vezes que não tenho "cara de promotor". Que categoria ontológica é essa – cara de promotor – que está no imaginário popular, eu não sei, mas a minha certamente não é. Meu palpite seria a de um homem de uns 50 anos, rosto meio esverdeado pela barba cerrada, voz de barítono e jeitão meio diatribe, de pouquíssimos amigos. Se for assim, eu de fato fracasso na tarefa involuntária de corresponder ao estereótipo. Sempre fui confundido, isso sim, com estagiário. Tenho consciência de ter mais cara de estagiário do que de promotor, o que se dá até hoje, com mais de 15 anos de profissão.
Isso acontece em razão do chamado preconceito. Preconceito é uma coisa altamente positiva, porque ele ajuda a nos orientar em situações cotidianas. Sujeito todo sujo de graxa deitado em baixo do carro? É o mecânico. Mulher atrás da caixa registradora da padaria? É a ela que devo me dirigir para pagar a conta. Casal (ele de fraque, ela, de noiva), na saída da igreja, recebendo chuva de arroz jogada por duas alas de pessoas rindo e falando alto? Acabaram de se casar. Chegamos a essas conclusões movidos por puro preconceito.
O preconceito é tão importante que nós incentivamos o seu uso o tempo todo, utilizando roupas, crachás, títulos, formalidades de tratamento e quaisquer outras modalidades de comunicação visual. Nas empresas privadas e nas repartições públicas, arrumamos a disposição das baias, salas e andares de modo que o quem-é-quem exsurja imediato e silencioso. E mais: não gostaríamos que fosse diferente. Não acreditaríamos se nos dissessem que o gabinete do Presidente do Tribunal fica ao lado do almoxarifado, no primeiro subsolo. A escola não seria tida como séria e não matricularíamos nossos filhos se o diretor se vestisse com o mesmo uniforme dos faxineiros.
É claro que, às vezes, o preconceito prega peças. Camarada fazendo corrida em dia de semana, em horário comercial, pode não ser um "vagabundo" mas, ao contrário, um trabalhador que deu duro nos últimos meses e está apenas aproveitando as férias para se exercitar. O próprio ladrão se vale do preconceito para enganar a vítima e tirar vantagem de seu intento criminoso, ao se passar por alguém confiável (o carteiro), inofensivo (entregador de flores) ou necessitado (vítima de atropelamento).
O saldo entre o que nos auxilia e o que nos prejudica é imensamente favorável, porque o preconceito nada mais é do que um conceito tão correto (ou seja, testado e aprovado) que se disseminou e incorporou no senso comum. É confiável, portanto, a ponto de eu não precisar ter a menor dúvida sobre quem é o sujeito de avental e gravata borboleta no restaurante – posso indagar se ele está atendendo a minha mesa, mas se eu perguntar se ele É garçom, a reação seria de ridículo ou de crítica sarcástica ao seu serviço.
O que existe de mal no preconceito é a sua utilização de modo mesquinho ou cruel ou, ainda, no caso de a pessoa não gostar de seus resultados. Nesta última hipótese, porém, o juízo é estritamente particular. Por exemplo, se me desagrada ou me diverte o fato de ser confundido com estagiário é problema rigorosamente meu, e de mais ninguém. O problema, se houver, está em mim, não no preconceito. Voltarei ao assunto em breve.
Jornal de Brasília