Raoni Maciel
Promotor de Justiça do MPDFT
A Lei que tipificou o feminicídio ganhou vigor em março de 2015. Passados mais de quatro anos, a impressão geral é de que os números dos feminicídios não param de crescer. Esta semana os meios de comunicação contabilizaram o 17º caso de feminicídio de 2019 no Distrito Federal. Ainda que a contagem nos jornais seja feita com base em apurações preliminares, ela é corroborada pelo incremento substancial no número de ações penais propostas pelo Ministério Público desde 2015, quando foram seis denúncias, até 2018, com 19 denúncias por feminicídio consumado.
Esses números absurdos e inaceitáveis parecem indicar um fracasso acachapante de nossas tentativas de controlar, ou ao menos minorar, a violência contra a mulher. Diante da sensação de frustração que esse quadro enseja, porém, é preciso lançar um olhar mais atento. Pode ser que, paradoxalmente, isso ocorra por estarmos caminhando na direção correta.
Em 1873 o desembargador José Cândido, da comarca de Alagoas, matou Mariquinhas, uma jovem de 17 anos. Mais recentemente, em 1976, Doca Street matou Ângela Diniz na praia dos Ossos, em Búzios. A qualificadora que trata do feminicídio foi positivada em 2015, mas crimes cometidos dentro dos contornos ali definidos, que só então passaram a ser chamados de feminicídios, já ocorriam anteriormente. Isso é óbvio, mas às vezes é o óbvio que nos escapa enquanto procuramos entender as coisas.
A própria vigência da lei não é, em si, o último passo para sua aplicação. O sistema de justiça criminal leva tempo para consolidar as interpretações relativas ao novo tipo penal. Longas discussões jurisprudenciais ocorreram para definir, por exemplo, que a qualificadora é objetiva. Uma questão teórica com reflexos práticos inclusive no número de casos que seriam contabilizáveis como feminicídio ao final do julgamento. Os feminicídios praticados dentro do contexto de violência doméstica ainda contam com a jurisprudência consolidada pela Lei Maria da Penha. Quando o crime envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher, por outro lado, o sistema de justiça criminal se depara com uma situação que exige toda uma nova construção conceitual, para tratar os feminicídios cometidos no espaço público.
Esses números trágicos, que parecem aumentar a cada ano, portanto, podem indicar que estamos melhorando nossa capacidade de identificar os feminicídios, e não que eles estejam propriamente acontecendo em maior número. Ter essa chaga social exposta é doloroso para todos nós. Porém, o enfrentamento desses crimes odiosos passa imprescindivelmente por reconhecê-los. Precisamos perseverar.
Correio Braziliense - 28/8/2019
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