Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Lembram do mendigo mencionado no artigo “Rolha de vidro”, de 5 de fevereiro passado? Pois é, ele continua lá, na mesma parada de ônibus. Sigo acompanhando sua trajetória, sem saber o que fazer com ele e mesmo o que pensar dele.
Às vezes ele está com roupas novas (na verdade, roupas velhas que outras pessoas não quiseram mais e bem poderiam ter jogado no lixo), mas parece estar definhando aos poucos. Noutro dia estava sentado, dormindo, com a coluna muito torta, numa posição decerto desconfortável, por mais que ele esteja acostumado.
Umas semanas atrás uma van estacionou em frente à parada e um grupo de umas oito mulheres conversava com o mendigo. O veículo tinha adesivos e as mulheres usavam camisetas idênticas, mas não consegui identificar se eram do governo ou de alguma organização. Talvez fossem estudantes de antropologia fazendo trabalho de campo. Elas o cercaram e ele lá, semper eadem, sentado, alheio a tudo. Imaginei que seria encaminhado a um abrigo (confesso que cogitei parar o carro e acompanhar o episódio mais de perto, mas isso claramente seria bisbilhotice e até causaria espécie), o que não aconteceu.
Pois hoje de manhã, por volta de 7 horas, vi-o entrando no mercado, com seu passo lento e arrastado. Segui-o, sem muita preocupação em me esgueirar para não chamar sua atenção, pois nada parece chamar a atenção desse homem. Ele rumou em direção à sessão de bebidas e pegou um garrafão de cinco litros de água e uma garrafa de uma aguardente famosa, cuja marca comercial são dois algarismos. Como naquela música, sem isso, ninguém segura esse rojão.
O mendigo entrou no caixa, pagou em dinheiro e foi-se embora. Nenhum funcionário o destratou. Um rapaz falou com ele com risinho à socapa, mas não escutei. Fiquei perto, cogitei cumprimentá-lo, mas não fiz. Mau cheiro não exalava. É uma figura mais triste que repugnante.
Jornal de Brasília - 22/4/2020
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