Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça
Hoje estou disposto a afirmar que o direito obedece a categorias idênticas às engendradas pela biologia, para quem a palavra “evolução” não tem um sentido normativo, ou seja, não significa exatamente um “melhoramento”. Quer dizer apenas uma mudança adaptada a um outro contexto, diferente do original: a chamada “descendência com modificação”. Vamos supor, por ex., que seja desenvolvida vacina e os homens se tornem resistentes ao vírus da AIDS. Isso não revela um avanço em relação a 100 ou 200 anos atrás, porque nessas épocas a doença não existia e portanto a imunização não era necessária. Não precisamos achar soluções para problemas que não existem. Do mesmo modo, se hoje entendemos como criminosas as condutas de “inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar” e “não cancelamento de restos a pagar” (Código Penal, artigos 359-B e F) é porque elas se tornaram um inconveniente na administração das finanças públicas, o que não acontecia quando o aparelho burocrático era mais primitivo (aliás, em biologia “primitivo” significa apenas “mais antigo”).
Evolução tampouco é sinônimo de complexidade. Do contrário, microorganismos, que são seres que cobrem um terço da biomassa do planeta, já deveriam ter sido extintos há muito, porque o período que cobre as inovações orgânicas até a culminância da sofisticação corporal e comportamental do homem, são tão longos que se contam por eras. O mundo é inclemente: estima-se que 99% das formas de vida algum dia existentes já não existem mais. Se os protozoários sobreviveram é porque conseguiram manter sua adaptação sem desdobrarem em seu número de células, o que não deixa de ser fascinante.
O direito não é tão antigo que possa ser contado por eras, mas suas manifestações, a norma jurídica em especial, funcionam como remendos de uma evolução que também sobrevive à base do binômio acaso/necessidade, e que não obedece a projetos pré-determinados por nenhum tipo de motivo histórico. Não que os muitos andares que nos embasam sejam informações irrelevantes, mas eles tampouco são comandos inexoráveis. Leiam Julián Marías e verão. Leiam Ortega y Gasset e vejam: “tudo, absolutamente tudo, é possível na história – tanto o progresso triunfal e infinito quanto a periódica regressão. A vida, individual ou coletiva, é a única entidade do universo cuja substância é perigo. Compõe-se de peripécias. Rigorosamente falando, é drama”.
É possível que, como na biologia, 99% das normas jurídicas um dia existentes já não existam mais, ou então caíram em um esquecimento tão embotado, que ninguém perde tempo procurando saber se estão ou já estiveram em vigor.
Há algo de inerentemente econômico no direito, e mais, conservador, porque ele “evolui” em seus mecanismos atuação em função de uma “seleção natural” já em progresso. Nesse sentido, a norma jurídica se parece com uma espécie de estrutura metabólica que raramente apresenta um design revolucionário e repentino. Por isso é que a funcionalidade dos ordenamentos mais díspares, malgrado as enormes diferenças, têm elementos em comum que se homologam tanto quanto a comparação entre as anatomias de um megatério (extinto) e a de um atleta olímpico (que acabou de bater o record mundial): ambos têm em comum numerosos aspectos, que vão do neurocrânio às falanges, passando por mandíbula, escápula, úmero, rádio, pélvis, fêmur, patela, tíbia e calcâneo, dentre outras partes.
A respeito das religiões antigas, E. Durkheim dizia que todas elas “correspondem às mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel; dependem das mesmas causas”. Portanto, “podem servir muito bem para manifestar a natureza da vida religiosa e, conseqüentemente, para resolver o problema que desejamos tratar”. Ele falava do ponto de vista antropológico e não teológico e, assim, estava certo. Pois essa certeza também se aplica à antropologia jurídica. A norma é a coluna vertebral do direito, e isso não é exatamente uma constatação elogiosa, porque a espinha é um dos órgãos mal adaptados a nos separar de outros primatas mais quadrúpedes do que bípedes. Como o nosso corpo, o direito não é sábio. É apenas um quebra-galho, uma muleta cultural relativamente artificial e somente potencialmente justa.
Jornal de Brasília