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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Alguém se recorda daquela onda do mar, aquela em que o fotógrafo conseguiu capturar a imagem de cinco ou seis golfinhos juntos? Foi um lance extremamente rápido, um átimo apenas, de muita sorte, mas também de competência, pois só poderia ter sido obtido após treinamento e com o uso do equipamento certo. Lembra-me o comentário do autor da façanha, algo como “esperei a vida inteira por esse momento”.

Pois bem. Quantos profissionais podem dizer a mesma frase?

Apaixonado que sou pelo passado, um pouco obcecado até, consumo uma considerável parte da minha disponibilidade de tempo lendo sobre história antiga, paleoantropologia e primatologia (coisas que me interessam muito mais do que os últimos modelos de carros ou de computadores). Leio em Don Johanson a imensa dificuldade que um estudioso tem para ir a campo e, estando lá, tudo parece conspirar contra si: monotonia da paisagem, calor excessivo, falta de conforto, pressão exercida pelos financiadores. Vale a pena? "É um jogador, vive de esperança", acredita o descobridor do fóssil hominídeo mais antigo do mundo, comparando-se a um explorador de pepitas. E prossegue: “Nada tem a sustentá-lo, a não ser a crença de que a próxima bateia de cascalho ou a seguinte conterá ouro”.

Assim Johanson celebra o seu final feliz: "Tendo encontrado o que procura, toda a razão para estar lá, o âmago da mais secreta motivação, se justifica. Então, de repente, você encontra a peça. Por toda a vida, você jamais esquecerá esse momento”.

Sou promotor público e tentarei comparar o meu próprio ofício com essa descrição e com o comentário do fotógrafo.

Qual seria, então, o momento de glória para um membro do Ministério Público? O que o promotor está procurando tanto, perdido não no meio do clima sufocante dos sítios arqueológicos, mas no ambiente tenso, porém urbano, dos papéis empilhados do fórum? A justiça? Mas que justiça é essa?  Achando-a, saberá identificá-la? Quando não sabemos onde está, ao menos existe alguma “esperança” a incentivar o explorador.

Qual é a "secreta motivação" do promotor?Veja que "ganhar causas" só produz uma satisfação pessoal isolada, fugaz e, mesmo assim, estranha. Conseguir a condenação de um jovem de 19 anos a outros 27 de cadeia, por mais que isso seja necessário, não é razão para promotor nenhum sair estourando garrafas de champanhe. Esse é o tipo de vitória que se comemora contrariado, com sensação de miséria no coração. Em um caso difícil, de estupro, eu mesmo já pedi a condenação nos autos, mas sugeri verbalmente ao juiz que absolvesse o réu, sinalizando que não recorreria se isso acabasse acontecendo, como de fato acabou.

Convém lembrar que ganhar, empatar ou perder causas não fazem a menor diferença no contracheque do promotor, ao contrário do que ocorre com advogados, que vivem de honorários e do sucesso diante de sua clientela (e não há nada de errado nisso).

Por outro lado, pode ser que o promotor tenha gosto pela disputa dialética, em que os argumentos são apresentados e rechaçados por outros argumentos, e vence quem alegar melhor, rigorosamente dentro das regras do jogo. Para os que pensam que é assim que funciona a máquina judicial, más notícias. Esse quadro altamente idealizado não ocorre com frequência nem mesmo no espaço universitário, dominado não pela pluralidade livre de idéias, mas pela técnica burocrática, conflitos pessoais e engajamento político. No mundo forense, são raríssimas as oportunidades em que o excelente advogado exige do promotor o melhor de si, e o juiz produz uma decisão de absoluta imparcialidade e alto nível de raciocínio. Comigo, eu afirmaria que isso só se deu uma única vez.

Participar de julgamentos famosos tampouco pode corresponder ao sonho acordado do profissional, como quem estufa o peito e diz: “Eu fui o promotor do caso tal”. Não é isso o que justifica “toda a sua razão para estar lá”, consoante dito por Johanson. Muito pelo contrário, processos muito conhecidos são também motivo para constrangimento. Um assassinato é obviamente um fato grave, mas a vida da vítima não vale nada mais do que
nenhuma outra ceifada por outro homicídio. Ganhando maciça repercussão na imprensa, parece que vale.

Prossigo nesta egotrip oportunamente.

Jornal de Brasília

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