Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
O “Homo sapiens” é o “homem que sabe”. Mas que sabe o quê? Alguma coisa que seja, em algum patamar de abstração e transmissão pedagógica. E mais do que isso: ele sabe que sabe. Olhamos para o Rei Davi e temos a certeza imediata de que não estamos no mesmo nível mental dos orangotangos. Visitamos a Capela Sistina ou a Catedral de Toledo e facilmente nos damos conta de que somos muito superiores aos mono-carvoeiros. Lemos os sonetos de Shakespeare e não conseguimos deixar de nos sentir superiores intelectualmente aos celenterados e quelônios.
José Ortega y Gasset sugeriu que devêssemos ser classificados como “homo insipiens”: o homem que não sabe, o homem ignorante. Somos muito ignorantes, é claro, desconhecemos uma enormidade. Mas evoluímos e conquistamos algum grau de sofisticação espiritual. Se esse grau ainda não foi fausticamente suficiente para aplacar a ironia orteguiana, paciência. O antropólogo Clifford Geertz dizia que não é porque nunca conseguiremos produzir salas de cirurgias 100% assépticas que devemos proceder às operações médicas nos escoadouros do esgoto. As salas podem não ser a tradução perfeita da limpeza, mas um nível aceitável de higiene já logramos atingir.
Entre parêntesis: eu, particularmente, sou mais preocupado com retrocesso do que com progresso. Quando vejo o prédio onde moro, que tem menos de cinco anos e já apresentou goteiras na sala, banheiro e quartos do meu apartamento (que me custou uma fortuna), eu penso na solidez eterna da York Minster, e não consigo evitar a pergunta: cadê o efeito catraca? É pedir demais um barraco seco para morar? É sempre em York Minster que penso nessas horas de melancolia. Fecha parêntesis.
É proverbial a ojeriza que os homens têm por “discutir a relação”. Em regra, mulheres dão muito mais importância à palavra do que o sexo oposto. Ambos precisam obter demonstrações constantes e inequívocas de afeição, mas as mulheres, em escala muito mais elevada, precisam ouvir o eu-te-amo, o estou-com-saudades, o você-está-linda. Observem o conteúdo das revistas especializadas para ambos os públicos. As voltadas para a clientela masculina enfatizam temas como carros ou engenhos eletrônicos, bebidas ou charutos, piadas picantes, entrevistas com playboys bem sucedidos (Jorginho Guinle por antonomásia) e técnicas de conquistas -- além, é claro, de fotos com modelos as mais provocantes e com o mínimo de roupa possível. Acho que nunca uma revista masculina publicou – senão a título de paródia – matérias do tipo “como fazer ela declarar seu amor todos os dias”. Tenho certeza que mulheres não gostam de caras melosos e piegas. Os tipos grossos e porcalhões não são ideais, mas têm mais chances no mercado do amor (especialmente se forem bonitos). Eles prefeririam que elas fizessem outra coisa todos os dias.
Mas o “discutir a relação” é importante porque é o tópos onde o sujeito, antes de mais nada, encontra-se consigo mesmo. Ou seja, é a chance que ele se dá para parar e pensar, aproveitando-se das vantagens de ser um “homo sapiens”, aquele que sabe que sabe, e isso se dá em virtude da consciência e da introspecção. Esta é a pausa solitária e silenciosa que se faz para um balanço da própria vida. É o momento de coragem em que se coloca as neuroses e as mentiras de lado, e se procura meditar sobre o que se tem feito de certo e errado, incrementando o primeiro e corrigindo o segundo.
Por lei, juízes e promotores têm 60 dias de férias por ano. Assevero que isso é extremamente relevante. O altíssimo volume do serviço forense faz com que os operadores disponham de pouco tempo, pelo que acabam trabalhando por atacado, de forma protocolar e sem refletir sobre cada caso o quanto gostariam. As pausas (as férias) permitem que cada um aproveite para estudar, aprofundar sobre o que já sabe ou ler sobre coisas novas, ou simplesmente descansar. Muitos questionam os 60 dias, mas a título de crítica destrutiva: porque gostariam também de tê-los, não por achar que os promotores não mereçam ou não precisem. Todos precisam viver, e todos merecem desfrutar as vantagens da introspecção e discutir suas relações.
Jornal de Brasília