Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
“A autobiografia de Alice B. Toklas” é uma brincadeira literária de Gertrude Stein porque é a biografia de Alice B. Toklas escrita por ela mesma, Gertrude Stein, à guisa, segundo esta, do que Daniel Defoe fizera com Robinson Crusoe. Melhor dizendo, trata-se da biografia pouco velada de Gertrude Stein narrada ficticiamente por Alice B. Toklas, já que a obra fala mais da autora real do que da falsa autobiografada. Só faltou a advertência de que era uma autobiografia não autorizada.
O cartão de visita é a passagem em que Toklas diz que em toda a vida só encontrou três gênios “de primeira grandeza”, que ainda não haviam amplamente sido reconhecidos como tal mas que a fizeram ouvir “uma campainha tocar” dentro de si. Um foi Pablo Picasso. Outro, Alfred N. Whitehead. O terceiro, adivinhem quem foi? Isso mesmo, Gertrude Stein. Aliás, ela foi a primeira arrolada em sua lista particular.
No capítulo 5 são mencionados “gênios, quase gênios, projetos de gênios” que a dupla conheceu, sem menções específicas. Mas são diversas vezes citados Hemingway, Matisse, Braque, Sherwood Anderson, T.S. Eliot, Cocteau, dentre muitos, muitos outros. É estranho que na categoria de intelectos notáveis figurem pessoas das quais se ouviu falar vagamente ou nem isso. Você teria a cachimônia de admitir que nem desconfia quem foi Bravig Imbs, Ford Madox Ford e Robert Coates? Ou será que a epítome das glórias mundanas seja aparecer na revista Caras ou no programa do Faustão?
Em “As aventuras de Tom Sawyer”, Mark Twain referiu-se a si próprio como “um grande e sábio filósofo”. O ponto que quis demonstrar foi o seguinte: “trabalho consiste naquilo que o corpo é obrigado a fazer e brincadeira é aquilo que não o é”. A julgar pela diegese desse fluxo de consciência (o livro foi escrito em terceira pessoa), parece que de brincadeira o autor não estava não.
Jornal de Brasília - 09/12/2020
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