Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Karen Blixen julgava as pessoas de acordo com o que elas achavam de “Rei Lear”. O critério não deixa de ser curioso. Afinal, até que ponto é necessário se ler Shakespeare? Ou seria menos do que isso: apenas enriquecedor, conveniente, “interessante”?
Você teria coragem de admitir que nunca leu “Lear”? Contenta-se com o caldo de “Romeu e Julieta” e “Hamlet” e risca o nome do Bardo de suas incumbências intelectuais? Muitos e muitos viveram e morreram sem jamais suspeitar que Shakespeare era obrigatório, e esse vergonhoso ignorar não fez diferença, mas não fez mesmo.
A própria mulher de Shakespeare não leu Shakespeare, em primeiro lugar porque provavelmente era analfabeta. Além disso, o casal não vivia junto (por anos nem sequer na mesma cidade) e os indícios apontam para o fato de que não era apaixonado entre si (lembram daquela história da “segunda melhor cama”?). Por fim, nem todas as esposas são lá interessadíssimas naquilo que seus maridos escrevem, desde que ponham dinheiro em casa – e isso ele fez muito bem. Love, and be silent.
Aliás, quase ninguém da época de Shakespeare leu Shakespeare. Os próprios atores não recebiam os textos integrais, e sim suas falas, em pedaços de papel chamados “roles”. Até hoje se diz que o ator, em uma produção de teatro ou cinema, tem um “role”.
Algumas peças (cerca de metade) foram divulgadas em edições “Quarto” e, após a morte do autor, em uma coleção mais luxuosa e completa conhecida como “Primeiro Fólio”, pelas mãos de dois ex-companheiros de ribalta, que compilaram a obra. Sem essa dupla, Shakespeare talvez não fosse mais que uma nota de rodapé.
Há diferenças entre versões do Primeiro Folio e do Quarto; Rei Lear é uma das peças com divergências mais profundas. Se Karen Blixen pedisse minha opinião, eu perguntaria: do Folio ou do Quarto, baronesa?
A propósito: quem foi Karen Blixen?
Jornal de Brasília - 03/3/2021
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