Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça do MPDFT
Fala-se muito, mas muito mesmo, em “Estado Laico”. A afirmação recorrente é a de que “o Brasil é um Estado Laico” e que a religião – entenda- se o cristianismo, em especial o católico romano – não pode interferir na vida privada dos não-adeptos. E mais não se diz, na expectativa de que essas sentenças padronizadas e baldias, repetidas à exaustão, produzam os efeitos desejados pela via do cansaço e do mimetismo. Exatamente como aquela mentira contada mil vezes que se transforma em verdade, consoante a famosa propaganda nazista.
Tudo isso se chama proselitismo, pois faz parte de um movimento explicitamente ateu, e o ateísmo é ele próprio uma crença: a de que Deus não existe. Portanto, o objetivo é substituir por outra uma religião já estabelecida, ou seja, conhecida, testada e, goste-se ou não, aprovada.
Com efeito, de acordo com o último censo do IBGE -- um órgão público leigo a mais não poder --, quase todos os brasileiros acreditam em alguma forma de manifestação divina, e 89% são cristãos (73,8% católicos). Foi apontado um percentual de pessoas “sem religião”, mas trata-se de um grupo pequeno e extremamente heterogêneo, formado por ateus, agnósticos e crentes desvinculados de confissões específicas. A diferença é imensa.
Não se confunda, leitor: se dizemos “Estado brasileiro” é por força de expressão. O Brasil não É um Estado. O Brasil TEM um Estado.
Minha definição predileta vem de um etnólogo francês chamado Pierre Clastres: “O Estado é o exercício do poder político coercitivo”. Clastres chegou a essa conclusão pelo estudo do fenômeno político e por observação por conta própria, não por ser cristão – o que, de forma alguma, ele era.
Estado não é uma ontologia; é uma técnica. É um mecanismo de organização jurídica da sociedade, com uma configuração histórica, geográfica e política mais ou menos bem definida. Esse mecanismo não é o único, não é o primeiro (ao invés, é bem recente) e talvez não seja o último. Na opinião de Clastres, decerto não é o melhor; ao contrário, o autor predicou uma série de termos depreciativos à instituição estatal, a saber: “brutal mau encontro”, “acidente trágico”, “infelicidade inaugural”, “ruptura fatal que jamais deveria ter se produzido”, “irracional acontecimento”, “perda talvez irreversível”, “estranha síntese”, “impensável conjunção”, “inominável realidade”.
É claro que o Estado é e tem de ser laico em numerosas questões que não têm nada a ver com qualquer expressão religiosa, como saneamento básico, tratamento de água e esgoto, asfaltamento de ruas, recolhimento de lixo, abastecimento de energia, iluminação pública, plantio e poda de árvores, construção de viadutos, recuperação de estradas, policiamento, força militar, recenseamento, tributação, educação fundamental, fiscalização de posturas, serviços de saúde e serviços em geral. Todos esses assuntos são burocráticos e devem ser entregues a funcionários públicos, não a místicos.
Já a vida privada, essa sim um fim em si mesmo, é um complexo moral que o direito mais reconhece do que cria, e o faz em respeito à tradição que se encarregou de moldar a “alma” de um povo e plasmar a individualidade de seus componentes. E nisso há um volume inevitável de “imposição”, inclusive involuntária, porque ninguém está acima da própria cultura onde vive, que “impõe” regras de conduta. O que compete ao sujeito fazer é exercer sua liberdade de aderir ou não a elas, nada mais. Não é a mesma dúvida do ovo ou da galinha. Perguntem a Clastres quem nasceu primeiro.
Para Gustav Radbruch, “não há um único domínio da conduta humana, quer interior, quer exterior, que não seja suscetível de ser ao mesmo tempo objeto de apreciações morais e jurídicas”.
A diferença é menos de conteúdo do que de direção (ou “teleológica”): a moral se interessa pela conduta externa quando exprime uma intenção, e o jurista, em sentido inverso, procede da vontade ao ato, a fim de classificá-lo e julgá-lo. Nenhum dos dois se ocupa de pensamentos em estado puro. Só a religião. Pecamos muitas vezes somente por querer ou por não querer; aliás, a omissão pode ser bem mais grave do que a ação.
Mas a conversão à ladainha do Estado-Laico é um pecado mortal.
Jornal de Brasília