Dermeval Farias Gomes Filho
Professor de Direito Penal no Fortium, Escola da Magistratura do DF e Fundação Escola Superior do MPDFT e Promotor de Justiça do MPDFT
Em decisões recentes, o STF tem alterado posicionamentos anteriores e inovado com interpretações de temas ligados ao Direito Penal. Tal fenômeno pode ser compreendido como uma filtragem constitucional do Direito Penal ou, de outro modo, como um retorno ao modelo interpretativo de acentuado subjetivismo do neokantismo em razão de soluções, aparentemente, afastadas do mundo do ser, com imprecisões nas posições e divergências entre as Turmas, sem uniformização jurisprudencial.
Como fonte, os temas e julgados seguintes servem para a análise crítica:
a) insignificância e uso de drogas por militar: nos HCs 92.961/SP de 11/12/07 e 94.809/RS de 12/08/08, o STF aplicou o princípio da insignificância no uso de drogas de militar. Em seguida, afastou esse entendimento, de forma liminar, no HC 94.685 de 09/09/2008, o qual foi submetido ao Pleno, com novo exame no INFO 526 de 30/10/2008, ainda sem decisão final; b) maus antecedentes penais: no AI- AgR 60.4041 de 08/07, reconheceu inquéritos e processos em andamento podem constituir maus antecedentes(1), depois, ante a divergência entre as Turmas, a questão foi submetida ao Pleno com os HCs 94.620 e 94.680 em 14/10/2008. Enquanto o Pleno não se pronuncia, a 1ª Turma entendeu, no HC 95.585 de 11/11/2008, que os “maus antecedentes representam os fatos anteriores ao crime, relacionados ao estilo de vida do acusado e, para tanto, não é pressuposto a existência de condenação definitiva”. c) continuidade delitiva e crime da mesma espécie: no HC 89.770 de 10/10/2006, a 2ª Turma afirmou que a jurisprudência da Corte está sedimentada no sentido de que estupro e atentado violento ao pudor configuram concurso material e não crime continuado. Entretanto, no HC 89.827 de 27/02/2007, ante o empate na votação, a 1ª Turma reconheceu a continuidade delitiva entre esses crimes. Em seguida, na decisão de 04/11/2208, no HC 94.714/RS (INFO 527), a 1ª Turma negou a continuidade delitiva entre o 213 e 214, afirmando a existência de concurso material, sem enfrentar a questão atinente aos critérios do bem jurídico e do tipo penal(2).
Sem dizer se essas decisões anteriores são certas ou erradas, o objetivo deste pequeno artigo é buscar identificar esse modelo interpretativo. Com um primeiro olhar, a atuação do STF, nos casos apontados, pode ser vista como verdadeira interpretação constitucional do Direito Penal, afastando-se do modelo dogmático puro e ingressando em valorações que possibilitam a justiça no caso concreto. Seria um modelo axiológico com suporte nos princípios constitucionais penais, os quais guiam a política criminal do Estado, numa visão funcionalista racional-teleológica do sistema penal. Nas palavras de Claus Roxin:
“Parto da ideia de que todas as categorias do sistema do Direito Penal se baseiam em princípios reitores normativos político-criminais, que, entretanto, não contém ainda a solução para os problemas concretos; estes princípios serão, porém, aplicados à ‘matéria jurídica’, aos dados empíricos, e com isso chegarão a conclusões diferenciadas e adequadas à realidade.”(3)
Nessa perspectiva, a nova interpretação do sistema penal, com o uso cada vez mais constante de princípios constitucionais explícitos e implícitos, seria uma mitigação do modelo ontológico finalista, consagrado na parte geral do CP de 1984, com a introdução de avanços do funcionalismo teleológico funcional de Roxin no que atine à proposta de princípios políticos criminais como guias do sistema penal.
Com um segundo olhar, pode-se afirmar que a conclusão anterior não é tão clara. Isso porque os temas de Direito Penal, não uniformes na doutrina, não têm sido pacificados no STF, já que as decisões “inovadoras” não gozam de consenso entre as turmas e, quando a questão é submetida ao Pleno, não surge uma resposta célere para afastar a insegurança reinante na interpretação penal de normas incriminadoras.
A título de ilustração, quando se trata do princípio da insignificância, uns são absolvidos por atipicidade material, enquanto outros sofrerão as consequências da condenação, ou seja, mais restrição da liberdade para uns e menos para outros em situações fáticas idênticas.
Diante disso, parece existir atualmente um dualismo metodológico na interpretação penal do STF, semelhante ao que reinou no neokantismo, quando a subjetividade permitia soluções abstratas afastadas por completo da realidade concreta. É o dever ser que não se importa com o ser.
Foi característica do sistema causal neoclássico ou neokantista o tratamento das categorias dogmáticas com conteúdo valorativo, porém com uma desordem de conceitos, subjetivismo extremo, distanciamento por completo do mundo do ser e interpretações ancoradas unicamente no dever ser. Com isso, seu normativismo acentuado isolou a realidade do mundo dos valores, se esqueceu de fazer a adequada interpenetração entre direito e realidade (dualismo metodológico). Houve desordem dos pontos de vista valorativos, conseqüência do relativismo valorativo(4).
Percebe-se, nessa segunda análise, que as contradições nos julgados citados acima não são diacrônicas, mas sim sincrônicas. Os primeiros representam mudanças jurisprudenciais em decorrência de alterações no modo de viver da sociedade, uma adaptação do direito à realidade social. Enquanto os segundos, também chamados de contrastes concomitantes, correspondem a duas ou mais formas de interpretação do mesmo dispositivo de lei.
“No caso de divergências sincrônicas, percebe-se uma justiça que passa a imagem de indecisão e aparenta aos olhos do cidadão como incapaz de chegar a um acordo sobre determinado problema, mostra-se errática e flutuante, perde autoridade, torna-se desacreditada e é alvo de descrédito dos seus destinatários. Além disso, põe em risco a segurança jurídica e o princípio da igualdade, gerando sentimentos de confusão que perturbam o próprio exercício da ação penal.”(5)
Não se propõe aqui a abolição da subjetividade na interpretação judicial, na linha de uma proposta arcaica de ser o juiz a mera boca da lei, sem possibilitar o exercício do juízo valorativo. Ora, é impossível a figura do julgador neutro(6). As convicções ideológicas, religiosas, sociais de cada magistrado influenciam a forma de operar o Direto. Somam-se a isso as mudanças da vida cotidiana que propiciam a evolução da interpretação do Direito.
Todavia, malgrado o reconhecimento de que um modelo axiológico atrelado aos princípios constitucionais fundamentais seja crucial para a análise do Direito Penal consentâneo com o Estado Democrático de Direito, impera registrar, nos limites do tema examinado, que o STF não pode ignorar o caso concreto e os reflexos sociais das decisões exaradas no campo da segurança jurídica e da igualdade.
O Tribunal Constitucional, no ramo do Direito que trata da liberdade, para formar jurisprudência e dirimir divergências na interpretação, precisa decidir célere de forma coletiva, menos por turmas e muito menos por decisões monocráticas. A independência funcional é importante, contudo é mais valiosa a uniformidade de entendimento quando se cuida da liberdade, afastando assim o tratamento desigual para situações idênticas. Esse modelo, embora seja difícil, deve ser buscado pela Corte.
Por fim, extrai-se que o modelo atual de interpretação penal do STF pode ser contemplado de duas formas, quais sejam: uma simples filtragem constitucional do ordenamento infraconstitucional, com uma mitigação do finalismo e adoção, em parte, da proposta funcional racional-teleológica; ou, de outro modo, ante a imprecisão conceitual e contradições sincrônicas, há um regresso ao acentuado subjetivismo neoclássico ou neokantista. Com os dados acima, fica difícil se afastar dessa última qualificação.
Notas
(1) O STJ tem posição consagrada em sentido diverso, ou seja, inquérito e processo em andamento não podem ser utilizados como maus antecedentes ante o princípio constitucional da presunção de inocência.
(2) A 6ª Turma do STJ, em decisões recentes, tem adotado a posição de os crimes da mesma espécie são os que ofendem o mesmo bem jurídico, reconhecendo assim a possibilidade de continuidade delitiva entre os arts. 213 e 214, 157 e 158, do CP, conforme HC 99.810-SP (INFO 371) de 07/10/2008, REsp. 1.031.683-SP (INFO 375) de 06/11/2008.
(3) ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 61.
(4) GRECO, Luís. “Introdução à Dogmática Funcionalista do Delito”, Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 8, 32. São Paulo: RT, 2000, pp. 126-127.
(5) GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito Penal e Interpretação Jurisprudencial. Do Princípio da Legalidade às Súmulas Vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 78.
(6) BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e Aplicação da Constituição. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 282.
Boletim nº 196, de março de 2009, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCcrim