Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Em O rinoceronte, de Eugène Ionesco, os moradores de uma cidade qualquer no interior da França começam, de repente, a se transformar em rinocerontes. A peça foi inspirada nos rallies de Nuremberg, onde muitos e muitos milhares de indivíduos ficavam mesmerizados pela presença, ademanes e invectivas de um único homem (aquele cabo boêmio), de maneira kafkaniamente contagiante.
No “teatro do absurdo” de Ionesco, que foi contemporâneo do encantador de paquiderme do país vizinho mas que nunca esteve presente a um desfile e não o viu com os próprios olhos (aliás, o texto é de 1960, quando a Guerra Fria era um monstro mais medonho que a extinta fina-flor do governo nazi, e boches do segundo escalão para baixo eram bem-vindos pelos Aliados em áreas de suposta expertise), o primeiro contaminado pela “rinocerontite” foi um certo monsieur Boeuf.
Na vida real, não houve propriamente uma metamorfose inaugural. Quando deu início a suas arengas pelos porões esfumaçados de Munique, o cabo boêmio já contava com uns e outros encrenqueiros no gargarejo, aplaudindo-o febrilmente e implorando-lhe para bisar.
A coisa cresceu, não só em número, mas em gênero. O praça subiu na bicada das patentes até a proeza de converter vinho em água. Nos salões chiques de Berlim, foi haurido por um misto de curiosidade condescendente e utilidade fútil na luta contra a democracia de Weimar. Claro, o dinheiro rolou solto. Pecunia non olet.
A cidade de Ionesco acabou tomada por uma matilha de rinocerontes, ou uma vara, alcateia, manada, cáfila – não sei qual é o coletivo desse bicho. A peça fala em “mar”. Brada o personagem Bérenger: “Um mar de rinocerontes! E diziam que era um animal solitário! Falso!”. Falso, sim. Há mais coisas entre Boeuf e Bérenger – ou entre Burgebräukeller e o cadafalso do TMI, se preferir -- do que supõe a nossa vã zoologia.
Jornal de Brasília - 24/3/2021
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