Luciana Asper
Promotora de Justiça do MPDFT
O Departamento de Justiça Americano publiciza, em seu portal, como o “maior caso de suborno internacional da história”, as propinas de cerca de US$788 milhões pagas pela Odebrecht para autoridades governamentais brasileiras e de outros onze países na América Latina e África. Pelas práticas de subornos internacionais e violação das normas da Convenção Antissuborno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), só esta empresa assumiu penalidades criminais de quase cinco vezes o valor das propinas confessadas.
Pelos registros e pelas ações, não parece que o sistema de punição extraterritorial estará disposto a “esquecer” a corrupção por aqui, tão cedo. E tudo indica que os esforços para vigilância e persecução internacional serão mais intensos quanto maiores a sinalização de retrocessos relacionados à punibilidade interna. Neste sentido, foi instituído um grupo permanente de especialistas de três países membros da OCDE, com o propósito de monitorar a situação do combate à corrupção no Brasil, de modo contínuo e independente. Devemos entender que, em um mercado global, com cooperação internacional ativa e risco de punições extraterritoriais vultosas, empreender em países de notória corrupção, insegurança jurídica e impunidade interna, tem um risco financeiramente insustentável, afastando, portanto, investimento saudáveis e afetando severamente o desenvolvimento socioeconômico brasileiro.
Apesar disso, os retrocessos no combate à corrupção crescem vertiginosamente, desde 2018, e esta vulnerabilidade implica em frustração e desesperança, especialmente no momento atual, em que o fosso de desigualdade revela riscos sociais extremos. Para acomodar a angústia, aliviar a própria omissão ou sentimento de impotência, busca-se um rol de culpados. Que fique a responsabilidade pela mediocridade do Brasil, ora com os saqueadores, ora com os que estão institucionalmente incumbidos de conter tudo isso. Se não fizermos parte de nem uma ou outra lista, tudo certo. Lavamos as nossas mãos. E é justamente esta terceirização de culpados que nos mantém escravos da corrupção, há tanto tempo.
Tanto é que as recomendações dos tratados internacionais contra a corrupção são uníssonas ao ressaltarem que a solução sustentável para a corrupção começa com o envolvimento de todos os segmentos da sociedade civil na formação intencional de pessoas intransigentes à corrupção, comprometidas em promover coletivamente a cultura da integridade, de participação e controles sociais e com a contínua com a atuação intransigente dos órgãos de controle e punição. O problema mais profundo que temos hoje é a naturalização dos absurdos, dos saques e da inversão das vocações estatais.
Se queremos alguma mudança, ela partirá da forma como nossas instituições lidam com a corrupção. Se, para cada previsão normativa de defesa do patrimônio público, temos uma dezena de medidas para esvaziar seus efeitos, seria mais honesto e econômico nem mesmo prever tal proteção. As instituições são constituídas por pessoas, e somente pessoas intransigentes à corrupção poderão conduzir instituições que entreguem ao povo gestão proba, eficiente e efetiva, leis e veredictos que garantam a Justiça, a ordem jurídica, o regime democrático e os direitos fundamentais. Enquanto a intransigência for um mero discurso, surgirão inovações legislativas, ou decisões judiciais, para anular, prescrever, indultar ou anistiar a exponencial apropriação da coisa pública brasileira.
Quando sofremos de amnésia do passado recente, quanto às provas, às cifras desviadas, confessadas e devolvidas, quanto aos bens de luxo e valores monetários apreendidos, às centenas de condenações, e mesmo aos inúmeros crivos judiciais a que foram submetidas as investigações dos esquemas de apropriação dos bens públicos; ainda, quando não importam confissões detalhadas de pagamento de propinas milionárias às autoridades governamentais, então enxergamos o quão longe estamos da intransigência visceral à corrupção.
Quando a dolosa, sistêmica, exponencial e voraz apropriação da coisa pública é abafada pelos discursos centrados nos erros dos que investigam e punem, vamos de mal a pior. Somos, reiteradamente, benevolentes com os desvios escancarados. Mas, com os que buscam contê-los, somos implacáveis nos ataques, e nos rótulos. Será que, quando aceitamos esses discursos, conseguimos vislumbrar quem faria, nas mesmas circunstâncias, um conjunto melhor da obra de investigar e punir? Discernimos que os ataques se dão justamente pelos acertos e resultados que incomodaram o oligopólio da corrupção e não pelos erros? Percebemos algum caminho de persecução criminal contra os mais ricos, poderosos e intocáveis, que passe incólume às mais vigorosas desconstruções jurídicas e de reputações? Será que conseguimos vestir os “sapatos apertados” e os riscos que assumem os que se dispõe a lutar contra a impunidade e a corrupção, para servir ao nosso povo, ao nosso futuro, aos nossos filhos e à nossa nação? Somos, mesmo, tão indignados com os saques perpetrados justamente pelos que têm o dever de servir ao povo? E se somos, nossa indignação vai além do mero discurso?
Será, por fim, que o peso da nossa acomodação muda quando pensamos que metade dos brasileiros sobrevive de forma medíocre, com uma renda média mensal de até R$413, quando um botijão de gás custa R$ 85, e que esta metade pode estar contando com a nossa intransigência à corrupção para que, um dia, experimentem a igualdade em direitos e dignidade?
Estamos dispostos a resgatar, intencionalmente, a importância das forças de caráter, valores e virtudes, até que se incorporem no nosso comportamento? Estamos investindo no nosso lar e nas nossas organizações, para sedimentarmos a integridade, defendermos a retidão, valorizarmos a honestidade e nos agarrarmos à verdade e à justiça, como elementos essenciais de harmonia e da fraternidade humana? Perguntas que precisam de respostas francas. Reflexões que precisam de mais ação, compaixão e amor.
Estadão - 9/6/2021
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