Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT 

Citação muito recorrente é aquela de Dom Quixote -- “eu sei quem sou” –, que pretende denotar discernimento, maturidade, consciência acerca do próprio caráter. Se assim for, a citação está equivocada.

Ela aparece no capítulo V da 1a parte, quando Quixote é encontrado por seu vizinho Pedro Alonso todo machucado após tomar uma de muitas surras.

Quixote faz um discurso solipsista acerca de si pois se percebia como um cavaleiro andante, montado em um equino nobilíssimo, escoltado por um ajudante de truz (mas que tinha “sal na moleira” e acreditou que seus serviços seriam recompensados com uma ilha, da qual se faria o governador), devotado amorosamente a uma mulher semi-imaginária e com a missão, para resumir, de dar uma melhorada no mundo. Estranhos ele via como castelões, fidalgos e princesas e não como taberneiros, porqueiros e prostitutas. 

Quando o vizinho tenta lhe avisar quem ele e o escudeiro Sancho Pança de fato são é que é proferida a famosa sentença. Que assim continua: “e sei que posso ser não só os que já disse” – uns tais Dom Rodrigo de Narváez, Marquês de Mântua, Valdovinos e Abindarrais –, como “todos os doze pares de França e até todos os nove da fama, pois a todas as façanhas que eles juntos fizeram e cada um por si se avantajarão as minhas”. 

Portanto, a própria identidade, a começar pelo nome, era a coisa que Quixote menos sabia. 

Não há mistério a esse respeito. Todos os que o vislumbravam logo compreendiam que se tratava de um orate de marca, um louco varrido. No início do romance se avisa que “secou o cérebro” do protagonista, “de maneira que chegou a perder o juízo”. Tal aconteceu porque estudava muito e dormia pouco. Está explicado! Diz a lenda que Max Scheler morreu porque lia demais e não conseguia mais dormir. Existe muito Napoleão de hospício que não entende nada porque mal consegue ficar acordado.

Jornal de Brasília - 16/6/2021

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