Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - A natureza jurídica do amor

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 Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Já foi dito que casamento sem amor é juridicamente válido e produz todos os seus efeitos regulamentares. De fato, a motivação sincera, profunda e, em alguns casos, inexpugnável, que conduz um cônjuge em direção ao outro na construção de uma vida em comum não é calculado pelas instâncias oficiais responsáveis pela celebração do matrimônio. Não há como se medir essa motivação (não existe um "amorômetro"), e o código civil sabiamente não tenta resolver um problema que jamais conseguiria fazer. Daí porque a lei se contenta com a voluntariedade do "sim", não a título de espontaneidade e menos ainda de alegria enfim consumada, mas sem pressa de conquistar a felicidade o quanto antes e de uma vez por todas – ao contrário, com a ciência de que o felizes-para-sempre é apenas uma linha no horizonte. É um valor, não um fato.

Pois nada disso interessa ao direito – já está de bom tamanho se o pai da noiva não estiver furioso, segurando uma espingarda – embora o código ensaie timidamente a expressão "comunhão plena de vida" (art. 1.511), que tem um hálito sentimental, uma função estética evanescente. É mais licença poética do que conteúdo jurídico. Mas pode, também, ser uma armadilha.

Em compensação, é grande o número de detalhes burocráticos que envolvem o casamento enquanto contrato ("contrato", em direito, quer dizer união de duas vontades para determinado fim, não necessariamente de lucro financeiro), e toda essa preocupação revela ao menos duas coisas. A primeira diz respeito à sua óbvia relevância. Casamento e família são temas de um peso muito maior do que outros institutos previstos na mesma lei, como anticrese, evicção ou retrovenda, dentre muitos outros totalmente desconhecidos do grande público. Ali, o interesse em jogo é imenso, e não apenas do próprio casal e do reduzido grupo de parentes, mas de toda a sociedade.

Ademais, o comando das regras traz previsibilidade, que é um dos objetivos mais fundamentais do direito. O casal que resolve seguir à risca o gabarito legal sabe o que os espera na seqüência do enlace, em termos de acúmulo de bens (chamados "aqüestos"), filhos, herança, morte de um dos dois e a malsinada separação e/ou divórcio. O próprio divórcio é uma evolução do antigo "repúdio", em que o marido despedia a mulher "sem justa causa", impedindo-a de insistir no amor de maneira legítima: não te quero mais, ciao ciao. Talvez esse seja o desejo mais secreto de todos os maridos (o das mulheres seria matar seus maridos, mas nem todas o confessarão).

Assim, considerar como "casados" um par que não o é significa ou (1) desafiar a vontade de não terem contraído matrimônio formalmente, o que é uma agressão à sua vida particular, à guisa de casá-los na marra (aqui, o próprio Estado segura a espingarda); ou (2) desafiar a própria lei, que não permite que aquele casal se case, quando isso era do seu desejo; neste caso, a lei estaria permitindo algo que ela mesma proíbe, o que não faz o menor sentido.

Em suma, só o casal pode se casar por vontade própria, mas desde que a lei o permita. É a lei quem transforma nubentes em esposos, não eles mesmos por conta própria (art. 1.514, com sublinhado meu: "o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados") ou a autoridade religiosa, cujo ofício produz efeitos legais (números 1.515 e 1.516). Mas vocês conhecem pares que nunca se casaram e se apresentam como tal, usam alianças grossas nos dedos anulares esquerdos e até comemoram aniversário do casório, que nunca aconteceu.

Não é o casamento que inventa o amor. É o contrário, claro: este engendrou aquele. Ou por outra: o casamento é o aspecto jurídico do amor, é a sua dimensão não-privada, "social". O amor veio primeiro, antes de as pessoas se juntarem de maneira exclusiva e notória, seja em casamentos plenos, protocasamentos ou até em uniões rigorosamente ilícitas (por ex., entre irmãos, ou entre pai e filha). Portanto, acho que convém pesquisar, nem que seja aproximadamente e com todos os riscos, QUANDO começou o amor, o que pretendo fazer em meus próximos quatro artigos.

Jornal de Brasília

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