Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
No filme “Silêncio dos inocentes”, a estagiária da polícia Clarice Starling procura um prisioneiro perigoso, Dr. Lecter, para obter pistas acerca de outro criminoso que tinha uma vítima como refém. O tempo urgia.
Lecter, de fato, pode ajudar, mas não antes de fazer um joguinho mental com a estagiária, conhecer melhor sua estrutura psicológica, por que não se divertir um pouco. Ele era um canibal mas também um esteta.
O primeiro encontro entre os dois, para ela, tinha algo de formal, de mirandesco. Clarice queria que ele colaborasse no preenchimento de um formulário. Ele elogia sua bolsa mas zomba do calçado brega e do sotaque do interior. Acaba vendo em Clarice uma mulher encantadora e, ao fugir da cadeia, telefona e a tranquiliza, garantindo que não iria persegui-la, o mundo era melhor assim, com ela.
Pois bem. Clarice era órfã de mãe e, quando perde também o pai, vai morar com familiares distantes em um rancho, do qual foge em uma manhã gelada. Ao tomar conhecimento desse episódio dramático, Dr. Lecter indaga, sem meias palavras, se o homem da casa a assaltava fisicamente, ao que ela foi peremptória em negar:
- Não, ele era um homem muito decente.
A resposta poderia ser nesse sentido ou no sentido oposto; a trama, afinal, é fictícia. A questão é a previsibilidade da pergunta.
Muitas razões podem levar uma menina órfã a escapar de repente de seu lar adotivo mas a suspeita inicial, essa inexoravelmente recai sobre a conduta do padrasto ou do tio, ou de um irmão, um primo, um amigo do primo. É que são todos homens. Logo, são todos abusadores em potencial. São todos espancadores em potencial. São todos estupradores em potencial.
É assim que os homens estão sendo percebidos– ou se percebendo – no momento. Somos todos bandidos patentes ou latentes. Ser “um homem muito decente” é hipocrisia barata até prova em contrário.
Jornal de Brasília - 12/8/2021
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