Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
A expressão que dá nome a este artigo revela algo imensamente banal, que é o nosso modo de locomoção usual (embora tenhamos plena capacidade para fazê-lo de lado, de costas e de quatro, se o medo do ridículo o permitir). O título resgata algo de muito antigo, que parece perdido na memória do tempo: afirma-se que isso ou aquilo é "tão velho quanto andar para frente". É que já estamos acostumados demais para perceber que o fato em si é um acontecimento em tudo extraordinário: é uma esquisitice, uma doença que todavia se transformou em uma vantagem.
De acordo com a biologia evolutiva, nós viemos todos das florestas úmidas africanas, e fomos progressivamente nos adaptando a meios mais secos e mais heterogêneos mundo afora, o que vem durando uma meia dúzia de milhões de anos. Mas, se saímos da selva, o contrário não ocorreu, a selva nunca saiu de nós: "não há uma única tendência que não tenhamos em comum com os sujeitos peludos que adoramos ridicularizar" (F. De Waal).
O tempo se encarregou de nos tornar menos simiescos e mais modernos. O resultado é que somos mais altos, menos prognatos, menos salientes no toro supra-orbital e, de fato, menos peludos. Se perdemos em força bruta e agilidade é porque essas qualidades deixaram de ser tão relevantes; afinal, não foi por divertimento inútil que inventamos desde estilingues até naves espaciais, passando por armaduras e automóveis, pistolas e escadas rolantes.
O lado comportamental é ainda mais marcante, porque também somos mais inteligentes. Utilizamos o fogo, escrevemos livros, pintamos quadros e rezamos. Nesses e em inúmeros outros departamentos somos nós mesmos, absolutamente únicos: afora o homem não há nenhum animal que faça essas coisas sequer em parte, ou seja, pequenas fogueiras, frases curtas, um pouco de desenho e uma reza ou outra de quando em vez (cf. J. L. Arsuaga). O jurista poderia dizer que o homem é o único ser que tem o direito de excutir uma hipoteca ou que comete o crime de "prestação de garantia graciosa".
Não é uma definição das mais elegantes e decerto não seria aplaudida de pé em um congresso multidisciplinar, mas não chega a estar incorreta. A escolha de um traço destacado como fator de identificação da própria matéria-prima que o forneceu – um bípede, um homossexual, um criminoso etc. – é um artifício característico da técnica científica que fornece explicações do tipo causa e efeito. Mas não necessariamente situa o seu objeto como parte de uma estratégia global de sobrevivência, como um elemento dentro de "uma constelação de atributos operando juntos" (O. Lovejoy). O problema é que ver toda a constelação ao mesmo tempo é impossível. Só Deus o consegue. As coisas complexas tem "lados" e nós as enxergamos assim: por um lado é isso, por outro aquilo. As informações nos chegam diferentes e até conflitantes. Daí que, sobre os mesmos assuntos, a anatomia diz uma coisa, a arqueologia outra, a religião outra, e assim por diante. No direito, pode acontecer de um fato ser considerado lícito por um de seus "ramos", e ilícito por outro. As especialidades inevitavelmente abandonam a "estratégia global de sobrevivência" do jurídico e os estudiosos não disfarçam a panache de dizer que não entendem nada das demais matérias, que só estudaram na faculdade e olhe lá.
No artigo anterior, eu disse que o amor não tem uma dimensão ("natureza") jurídica propriamente dita, embora o tema não lhe seja nada estranho; ao contrário, a lei regula a fundo o instituto do casamento, que está intimamente relacionado consigo. E mais, com freqüência promotores criminais e do júri precisam mergulhar em casos de amor que degringolaram e terminaram na delegacia ou no cemitério.
Volto a andar para frente: como somos mamíferos, precisamos nos movimentar para nos alimentar, e a função locomotora "só pode ser compreendida se for também compreendida sua estratégia sexual" (Lovejoy). Essa estratégia é conhecida cientificamente como "K", conforme explicarei na seqüência. Por ora, afirmo que, a partir do desenvolvimento da capacidade de amar, tudo parece girar em torno do que temos de mais subjetivo: "Uma pessoa isolada deixa de sê-lo. A quem amaria? E se não ama, não é pessoa" (Miguel de Unamuno).
Jornal de Brasília