Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Brasília, 1o.1.2019, posse do Presidente da República: em determinado momento da cerimônia, o Rolls Royce oficial trafega pela rua das bandeiras, no caminho da Asa Norte. O sentido normal desse flanco do Eixo Monumental é pela esquerda, mas o carro vira para a direita, em direção à repartição do empossando, o Palácio do Planalto. Portanto, na contramão, em manobra irregular, nos ditames do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Você acha que o motorista deveria ter sido multado?
É possível desmontar a pergunta sem respondê-la – e é isso o que os juristas mais fazem. Alguém vai pescar no CTB algum dispositivo que breche a situação e dissolva ex machina o problema.
De fato, o artigo 95 prevê a hipótese de “evento que possa perturbar ou interromper a livre circulação de veículos e pedestres” mas reclama permissão prévia da autoridade do trânsito e aviso pelos meios de comunicação, com 48 horas de antecedência e indicação de caminhos alternativos. Mas vamos supor que o cerimonial tenha se esquecido ou nem se preocupado em solicitá-la.
Também vamos abstrair a estaca zero de se descambar para o lado pessoal, o da adoração que muitos sentem pelo Mito ou, ao contrário, de ojeriza que outros tantos nutrem pelo Bozo, obliterando assim este pequeno exercício de hermenêutica jurídica.
Onde realmente se queria chegar: no voto do juiz Foster, no fictício “Caso dos Exploradores da Caverna”, que se valeu da máxima “cessante ratione legis, cessat ipsa lex”. As condições objetivas que contextualizavam o Rolls Royce eram tão distintas do “quod plerumque accidit” da Esplanada que a lei não poderia obedecer ao mesmo padrão de aplicação. Se você espremer o raciocínio, enxergará a boa e velha tensão entre as dimensões axiológica e legalista do fenômeno em questão.
Se o motorista atropelasse e matasse alguém, convenhamos, a coisa mudaria de figura.
Jornal de Brasília - 20/10/2021
Os textos disponibilizados neste espaço são autorais e foram publicados em jornais e revistas. Eles são a livre manifestação de pensamento de seus autores e não refletem, necessariamente, o posicionamento da instituição.