Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Clarice Starling, estagiária da polícia, foi ter com o prisioneiro Dr. Lecter, psiquiatra inteligente mas perigoso, debochado, desconfiável. Talvez ele tivesse informações sobre um assassino conhecido como “Buffalo Bill”, que vinha matando garotas em série.
Dr. Lecter, de fato, sabia de quem se tratava e poderia ajudar, se quisesse. De início, não quis. Mas acabou se encantando com a perspicácia e beleza da estagiária (no filme, muitos viram o rosto para admirá-la, o que me pareceu, data venia, um parcial problema de casting). Só que nada de colaborar de mão beijada. Naturalmente, pediu vantagens, uma cela maior, vista para o mar, coisas desse tipo.
Ademais, o que ele passava para Clarice era precariamente objetivo pois esperava que ela captasse sutilezas e matasse charadas. Chegou a dizer que lera o processo de Buffalo Bill na íntegra e tudo o que a polícia precisava para descobrir seu paradeiro já estava nos autos.
Pois bem. Dr. Lecter diz que o “nosso Billy” não nasceu delinquente mas assim se tornou após anos de “abuso sistemático” e violência. Abuso da parte de quem, não especifica. Mas o primeiro suspeito não é outro senão o pai. Pior: um padrasto estúpido que ocupou o lugar de um pai ignorado ou ausente. Pior ainda: um segundo padrasto com o mesmo perfil.
A paternidade sólida e dedicada foi um dado que revolucionou a estratégia reprodutiva da espécie humana. Foi fruto de um pacto de exclusividade que prometeu – apenas prometeu – vantagens mútuas: a mulher garante que está a transmitir os genes do homem com quem se relaciona e o homem, em troca, ajuda a cuidar dela e do bebê. Eis a hipotenusa do casamento monogâmico, a maneira mais elaborada de se fazer sexo.
Padrões morais, religiosos e jurídicos são só o ganache, o glacê e o granulado em cima de um bolo que vinha sendo assado e servido há muito, muito tempo.
Jornal de Brasília - 27/10/2021
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