Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Sabe-se que Machado de Assis foi um homem discreto, introspectivo e de temperamento afável, porém cerimonioso. Não era nenhum misantropo mas, quando não estava recolhido em estudos e escritos, preferia encontros intelectuais, teatros, partidas de xadrez. Nada de agitação na vida cortesã, com pileques em bailes ou gargalhadas em rega-bofes pantagruélicos.
Ao menos parte desse comedimento foi fruto de sua presença física, que nada tinha de impressionante. Mulato, levou a maior parte da vida sob o regime escravocrata; ele próprio nunca foi escravo, nem seu pai, mas o avô era um “pardo” manumitido. De toda a sorte, sua origem foi muito modesta, pobre, sem berço, sem educação formal. Sofreu diversos problemas de saúde, como epilepsia (sentia paúra de sofrer ataque em público) e gagueira.
Não se sabe o quanto gago Machado era. Tudo indica que não era pouco. Em 1875, quando atuava como censor do Conservatório Dramático, proferiu voto ambivalente acerca da encenação da peça “Os lazaristas”. Descartou hipótese de imoralidade, indecência e irreligiosidade, mas ponderou que a obra continha “inconveniências” e linguagem “às vezes violenta”, a merecer “profundas modificações”.
A revista Mefistófeles caçoou do censor, dizendo que ele “gaguejou seu parecer”, nestes termos: “eu entendo que o dadrama não é imoral, mas é cacapaz de provocar babarulho e que a polícia de...de...de...” e por aí foi, em tom jocoso.
No mesmo ano, Machado traduziu “Les Plaideurs”, de Racine e, ao apresentar sua versão ao elenco, o ator português Francisco Teixeira da Silva Pereira indagou o seguinte: “Mas são gagos todos os personagens desta peça?”. Machado interrompeu a leitura, suspendeu a produção e a tradução se perdeu.
Moral da história: é válido questionar, polemizar, criticar, acusar até, mas trazer à tona defeitos físicos é golpe baixo, covarde e inaceitável.
Jornal de Brasília - 01/12/2021
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