Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
No filme “Melhor impossível”, Jack Nicholson interpreta Melvin Udall, escritor de evidente sucesso literário: é reconhecido na rua, leva uma vida de rico etc. Só que é superlativamente antipático, repulsivo até. Daquele tipo que os conhecidos tentam cultivar alguma amizade, mas chega um ponto insuportável em que não dá mais. Sem filtros, ele fala o que lhe dá na telha e isso traz muito mais problemas do que a ilusão orgulhosa de se perceber como alguém “autêntico”, não um “hipócrita”.
Na verdade, Udall tem problemas psiquiátricos diagnosticados (os entendidos dizem se trata de “desordem obsessivo-compulsiva”), faz terapia e toma remédios. Nas frestas de sua humanidade mais generosa, ele consegue se envolver romanticamente com uma mulher bem abaixo de seu nível intelectual e financeiro, mas bem acima de seu nível moral – uma moça simples, carente, com um filho adoentado, mas também esforçada, sensível e, sobretudo, doce. E jovem. Muitos homens acham que a feminilidade é a principal qualidade que uma mulher precisa ostentar. Juventude também vai bem.
Em uma cena, uma admiradora aproveita a oportunidade de estar com Udall por um breve momento e, toda animadinha, indaga como ele “consegue escrever tão bem sobre as mulheres”. Eis como ele se livra da garota: “eu penso em um homem e elimino razão e responsabilidade” (na vida real, essa frase é do escritor John Updike).
O objetivo deste artigo é mostrar a distância que existe entre o autor e a autoria. A confusão é corriqueira. As pessoas ficam decepcionadas quando descobrem que o emérito cientista é um sujeito intragável, que o artista genial é a grosseria antropomórfica, que o indivíduo com notáveis conhecimentos jurídicos é um mitômano, caloteiro e que bate na mulher. É que uma coisa não é incompatível com a outra. A bem da verdade, uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Jornal de Brasília - 2/3/2022
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