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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Uma famosa expressão cunhada pelo poeta Coleridge, “suspensão da descrença”, significa que o leitor de um romance sabe que tem nas mãos uma obra de ficção, mas interrompe provisoriamente esse saber a fim de se envolver na trama, dialogar com os personagens, enfim, desfrutar do livro.

O mesmo vale para o cinema e o teatro. Ao assistir a uma peça, o que acontece na ribalta é real até cair o pano. Depois, ninguém vai à delegacia reportar um delito ali cometido, ao tempo em que o ator morto já tirou a maquiagem e a roupa suja com sangue de araque.

A suspensão da descrença se aplica até a piadas. Só um chato, sem um pingo de senso de humor, pergunta o nome do português ou o do dono do papagaio. Com estrito objetivo de causar uma reação hilariante, o piadista tem o privilégio até de reinventar fatos verdadeiros, ainda que fracasse na justificação dos fins por todos os meios. Lançar pilhéria de deficientes mentais na abertura de um congresso sobre Síndrome de Down provavelmente terá desfecho mais desastroso do que o auditório não achar graça nenhuma e ficar mudo. Ou um enfezado invadir o palco e desferir uma bela bofetada no engraçadinho.

É que a suspensão nunca é absoluta. O filme fica mais interessante quando o ator consegue emular a aparência e os trejeitos do personagem. Há um estranhamento quando o idioma falado em “A lista de Schindler” é o inglês e seria ainda pior, ad argumentadum, se o protagonista fosse vivido por um jovem indígena ou uma mulher oriental.

Durante a apresentação, o cantor pode fazer o que bem quiser? A resposta está no show do The Doors em Miami, em 1969. O que era para ter sido uma noitada infeliz, com Jim Morrison se apresentando bastante alterado, acabou na quarta-feira de um tribunal, que mais se preocupa com os preceitos de códigos legais do que com os limites estéticos do mundo da fantasia.

Jornal de Brasília - 6/4/2022

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