Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - Diferenciação epigâmica

MPDFT

Menu
<

Ivaldo Lemos Junior

Promotor de Justiça do MPDFT

Nos últimos artigos, procurei falar sobre o amor do ponto de vista do direito, que pode não ser dos mais ternos e cativantes, mas que tampouco tropeça na irrelevância completa. As Varas de Família e Criminais exibem constantes love affairs que terminam mal, com desentendimentos variados que reclamam a intervenção de pessoas estranhas. Podemos estereotipar a Blanche Dubois como o exemplo da mulher amada de uma maneira, digamos, “juridicamente interessante”.

Mas esse amor é o passional. Não é o único. Existe um outro tipo menos intenso, que não perde o controle emocional facilmente; é algo que não se oferece exclusivamente a uma pessoa e sim a todas (erga omnes), de modo racional e duradouro. Trata-se da velha fórmula de fazer o bem, ou ao menos não prejudicar os demais (não matar, não trapacear, não xingar etc.). Em grego, chama-se “ágape”. Em linguagem cristã, é a “regra de ouro”. Está disponível mesmo para aqueles que não tiraram a sorte de achar a pessoa certa – seja lá o que isso queira dizer --, ou nunca tiveram filhos mas não chegam a estar dispostos a criar um monte de cachorros.

O que plasma o direito é o amor; não o erótico, e sim a boa-fé. Ágape é a pedra angular que os construtores rejeitaram. Desvalorizem a honestidade em favor da malandragem, e o edifício jurídico se transforma naquilo que Santo Agostinho chamava de magna latrocinia. Celebrar e cumprir um contrato é um ato de amor, por estranho que isso possa parecer.

Já argumentei que os humanos nos tornamos bípedes, passamos a vivenciar a menopausa e esticamos a “estratégia k” de reprodução a limites de extremada sofisticação – quando nada disso, em linha de princípio, era muito eficiente e podia até ser perigoso (Miguel de Unamuno dizia que o primeiro homem era um macaco doente). Por quê então o fizemos? Porque começamos a amar. E não paramos de fazê-lo desde então.

Recapitulemos os últimos milhões de anos em poucas linhas: em áreas menos arborícolas, fêmeas antropóides se tornavam fisicamente mais evoluídas (no sentido biológico) e capazes de oferecer cuidados maternos mais qualificados; a taxa de sobrevivência de seus filhotes era melhor que a de filhotes de mães pouco dedicadas. O que era um potencial social se cataliza como uma tendência genética; essa tendência se aperfeiçoa com condições intelectuais mais adequadas, o que exige cérebro grande que, por sua vez, significa boa qualidade de energia alimentar. A mulher gestante ou lactante está fragilizada, e deve ser nutrida por outros; o macho só vai se empenhar nessa tarefa se tiver alguma certeza de que a criança é realmente seu filho  (paternity confidence), pelo que uniões estáveis começaram a ser lucrativas para ambos os consortes, o que eliminou o período explícito do estro e diminuiu a competição sexual e o infanticídio. Infância longa reclama aprendizado pela via da brincadeira com outras crianças, o que se dá dentro de regras tradutoras de comportamento social aceitável, e esse comportamento é refinado para o resto da vida pelos mecanismos pedagógicos ou repressivos da moral e do direito.

É claro que as coisas não são tão simples; desequilíbrios e retrocessos são freqüentes e conseqüências também funcionam como causas e vice-versa: “cada tendência coopera com a outra, depende dela e a reforça”, ensina D. Johanson; “o feedback é multipolarizado e circular, com muitos aspectos, e todos eles se reforçam mutuamente”. Se você acha que somos casamenteiros e erigimos fidelidade como valor imposto de modo artificial pelo código  canônico, é porque não percebe que a regra só entrou em vigor muitíssimo mais tarde, quando estávamos preparados para absorvê-la, malgrado suas dificuldades e frustrações. Frustrações, sim: por ex., a monogamia jurídica não nos impede de desejar a mulher do próximo.

Biologia, história e direito não são tudo. As sociedades vivem bem, obrigado, sem essas coisas (por mais que os juristas insistam em dizer o contrário). Não somos comandados apenas pela necessidade, como também pelo desejo. Casamos, acima de tudo, porque queremos, e temos sob controle os quesitos que mais importam: se, quando e com quem. Sem o papel do amor, não somos mais que uns dinossauros, animais eróticos fadados à extinção.

Jornal de Brasília

 

.: voltar :.