Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Sujeito está dormindo em seu apartamento, no portentoso edifício Dakota, em Nova Iorque. Levanta, veste-se, pega sua Ferrari 250 GTO. Quando ganha a esquina, às nove e pouco da manhã, é picado por um estranhamento, que vai crescendo, crescendo, até o limite da agonia. Ele apeia e sai correndo, desnorteado, aos gritos: é que não há vivalma em torno. Não circulam pedestres, táxis, bicicletas, ambulâncias, a cidade está abandonada. A ilha de Manhattan virou uma ilha deserta.
Mas o mundo não acabou enquanto o sujeito dormia, não jogaram uma bomba atômica e ele não percebeu. Não há corpos pelas calçadas, nada de caos. O Sol brilha, o vento beija as copas das árvores, os engenhos luminosos funcionam normalmente.
A ampulheta virou. Seu carro de milhões só terá serventia enquanto durar o combustível, pois são necessários seres humanos entre a extração de petróleo e o abastecimento do tanque. Seu imóvel caríssimo não reunirá condições apropriadas de moradia, logo faltarão água e eletricidade. O homem é jovem e bonito, porém tais atributos para nada servem se não houver a quem a eles se opuser.
Agora vamos imaginar que esse sujeito esquecido evapore também. As luzes continuarão acesas e um dia apagar-se-ão. E apagadas ficarão pelos próximos milênios. Se destroços da cidade estiverem reconhecíveis, a próxima leva de gente poderá dizer muita coisa sobre seus antepassados. Mas com cuidado. Será preciso discernir que uma Ferrari era uma Ferrari e que as acomodações padrão Dakota não eram a regra.
Por falar nisso, e as leis? Como recuperar esse tesouro arqueológico e saber o que era real e o que eram normas programáticas? O que caíra em desuso e o que nunca passou de discurso. O que eram cidadania, soberania popular, o que à vera faziam os governos e os tribunais. O que eram terras devolutas, Ministério Público, qual o alcance do 142.
Jornal de Brasília - 7/9/2022
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