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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

O filme “Green Book” mostra a engenharia de uma amizade improvável entre dois sujeitos muito diferentes entre si – um foi contratado para ser o motorista/segurança/faz-tudo do outro, um pianista virtuoso, em uma turnê pelos EUA. Com a convivência, eles acabam descobrindo aspectos de personalidade que ignoravam e que, pensando bem, poderiam ser fascinantes. Um provérbio em inglês diz que “familiarity breeds contempt” (intimidade gera descaso), mas nem sempre é assim tão simples. A lógica do casamento duradouro – e, vá lá, feliz – implica modulação dessa regra, em uma boa medida.

O motorista era um homem branco, físico e pragmático, de um tipo chamado pejorativamente nos EUA de “white trash” (lixo branco). Primitivo, comilão, fumão, dono de uma sabedoria oriunda diretamente das ruas e não filtrada por instâncias simbólicas, era um Stanley Kowalsky, em suma. Falava o jargão mais vulgar e escrevia de maneira tacanha, quase fonética. Sabia resolver problemas como tarefas braçais, apaziguar brigas (ou consolidá-las), dar um belo chega-pra-lá em bêbados e encrenqueiros.

Já o músico era o refinamento em pessoa: doutor em psicologia, poliglota, de ademanes nobres e roupas chiques. Emérito intérprete de clássicos como Chopin, Liszt e Rachmaninoff, conquistou merecido prestígio internacional. Acontece que era negro, o que americanos, também depreciativamente, chamam de “Uncle Tom”, pois não era o diplomata da própria raça em termos culinários, esportivos e até artísticos (desconhecia Little Richard e Chuck Berry, por exemplo). Digamos que ele tivesse valor antropológico como entregador de boa música mas, assim que as luzes se apagavam, a carruagem virava abóbora de novo e ele voltava a encarnar o "neguinho" quirografário, quiçá pernóstico.

Moral da história: ninguém está 100% satisfeito consigo mesmo, pelo menos não por muito tempo.

Jornal de Brasília - 19/10/2022

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