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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Espera um pouco. Quer dizer que há quem entenda que Capitu não traiu Bentinho porque existe somente a versão dele? E que tal versão pode estar envenenada por lembranças equivocadas, ciúmes descabidos, ressentimentos amargos?

Pois bem. “Dom Casmurro” lança o seguinte desafio epistemológico: se você não está disposto a embarcar na (suposta) aventura solipsista de Bentinho Santiago, que narra suas memórias à guisa de um acerto de contas com os fantasmas do passado, por que se animaria a acreditar em qualquer episódio que ele viesse a protagonizar ou testemunhar? E se ele nunca tivesse sido casado? E se Escobar, Ezequiel, o agregado José Dias, o seminário maior e até o panegírico de Santa Mônica, tudo não passasse de exorcismos anódinos e absurdos?

A versão única só não prevalece se fracassar em um filtro de realidade primário, vale dizer, se a hipótese não conseguir ser percolada porque é abstratamente impossível ou tão superlativamente inverossímil que mereça ser descartada como inverídica. Mas a versão de Bentinho não é nada assim. Ao contrário, ela vasculha, com profundidade temporal e aparente riqueza psicológica, o corpo de delito que consiste no romance de formação de sua vida.

Em direito, chama-se “relação processual” um ciclo de transubstanciações entre informações, suspeitas, indícios e dúvidas, que se incoam como dados brutos e terminam ou querem terminar como fatos provados. Esse ciclo é relativamente perifrásico e arbitrário.

O fluxo de consciência entre Machado e Bentinho apenas coloca a questão intelectual, é verdade. Mas uma coisa é conceber que o relato é exagerado, patético ou, ainda que em parte, infundado – e, no bater do martelo, injusto. Outra, é alvitrar que o depoimento da própria história não tem credibilidade só porque foi elaborado à revelia de perspectivas que nem tinham como ser produzidas.

Jornal de Brasília - 9/11/2022

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