Ivaldo Lemos Junior
Procurador de Justiça do MPDFT

Pianista americano virtuoso, de talento amplamente reconhecido, resolve fazer turnê pelo sul do país. Estamos nos anos 1960 e ele, negro, sabe que vai enfrentar dificuldades raciais. Pois é isso mesmo que procura. Sua intenção nada tem a ver com o aspecto musical dos concertos, que poderia realizar em tantos outros lugares, sem aborrecimentos dessa natureza e com cachês bem mais atraentes. Sua viagem é política. Ele não mudará o cenário cultural, com uma única viagem isso é impossível, mas quer jogar uma pedra no muro, quer ter a satisfação pessoal de ter feito a sua parte.

Previsivelmente, é vítima de racismo descarado, com hostilidades gratuitas, proibição de provar roupa em loja, espancamentos em bares e até usar o WC na própria residência em que estava a se apresentar. Foi preso mais de uma vez ao longo da excursão. Foi olhado com estranheza ou antipatia por negros humildes e grosseiros.

Mas o momento mais agudo é sua última noite, quando tocaria em um hotel elegante e foi recebido com deferências ambíguas, isto é, com palavras melífluas e tapinhas, ao mesmo tempo em que era alojado em um camarim que não passava de uma despensa acanhada. O artista quis jantar no salão principal, onde já estavam seus músicos de apoio e seu motorista/segurança, todos brancos. Não permitiram a entrada do “convidado de honra” do evento. Ele insistiu e a coisa engrossou. O “maitre d” achou que conseguiria resolver conversando com o motorista e a este o pianista concordou em conferir a palavra final.

Eis a questão: os dois lados da tensão atribuíram a um terceiro errado a solução do impasse; seja lá o que fizesse, o nó continuaria apertado. O verdadeiro árbitro era o salão, ou seja, a opinião pública, a começar pela primeira mesa de brancos que puxasse uma cadeira e dissesse que o pianista poderia se sentar com eles, seria um prazer.

Jornal de Brasília - 15/2/2023

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