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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Noutro dia, fui a um supermercado com a intenção de adquirir um produto, um único. A Silvaneide, minha empregada, mandou-me comprar um ferro elétrico e, como bom patrão, obedeci. Levei minha filha Sofia, que tem quase dois anos e é muito mais levada do que eu gostaria. Com o pacote em um braço e a indócil criança em outro, entrei na fila preferencial, que tinha na espera uma senhora, com o carrinho cheio. Ela viu que eu tinha uma só coisa para passar e estava agoniado, mas não me deu a vez. Eu tampouco pedi; afinal, preferência é para quem precisa.

Quem usa transporte público sabe. Quem não usa, pode perguntar: homens não cedem seus lugares para mulheres. Isso não é de vez em quando, é sempre. Elas vão de pé se eles se sentaram antes e pronto, azar. A Silvaneide uma vez me disse que já pegou ônibus com uma mulher que estava se dirigindo ao hospital para dar à luz, bolsa rompida e tudo. E mesmo assim nenhum cavalheiro se prontificou a lhe oferecer o assento. Ao contrário, o mais próximo irritou-se ao ser instado a fazê-lo. E de fato não o fez.

Eu me lembro de ter perdido o controle emocional uma vez na vida, há cerca de 15 anos. Acho que já era promotor público. Fui ao cinema e as luzes começaram a se apagar. De imediato, uns jovens, na fileira detrás de mim, passaram a gritar e a arrotar. Eram 4 ou 5, todos na faixa de uns dezoito anos. Levantei-me e, num momento de insensatez e total falta de domínio sobre mim mesmo, enfrentei-os, determinando que se calassem ou que fossem embora. Para minha sorte, eles se calaram. Deviam ter ido para fazer um pouco de bagunça, não para brigar. Na dúvida, fui-me embora eu, logo em seguida.

Digo tudo isso porque tenho sérias dúvidas sobre o grau desejado de urbanidade que a nossa sociedade conseguiu construir para si mesma. Sim, vivemos em uma sociedade em que não faltam casos elementares da mais rude indelicadeza, em situações além de qualquer dúvida razoável, como a da moça grávida. E mais: parece que queremos continuar assim. Se um rapaz ao lado acatar o apelo silencioso que o convida a uma cortesia, ele será condenado à repreensão dos demais, o que provavelmente se dará de modo ostensivo, pela via do deboche. Ele sabe disso de antemão, e sentir-se-á dividido entre a manutenção da própria consciência e a aceitação pelos outros. Pode ser que quem dê a última palavra nesse dilema seja o próprio conforto, o que é frustrante do ponto de vista moral.

No parágrafo anterior, usei a palavra “sociedade” duas vezes, e o fiz de propósito, mas agora me corrijo. Sociedade não é um grupo de pessoas, um “agregado de indivíduos”, na expressão de Ralph Linton, uma “multidão” qualquer, como prefere Ortega y Gasset. Os componentes numéricos não são mais do que os fornecedores de sua matéria-prima. Linton exige a formação de “uma unidade social, com limites bem definidos”. Pelos exemplos dados e por muitos outros que poderiam ser facilmente lembrados, temo que estejamos aquém do limite que divide uma gente reunida por acaso e uma sociedade estabelecida, plenamente digna dessa denominação.

Sabemos que o Ministério Público é o defensor da sociedade, mas o promotor nem sempre sabe apontar com segurança para os seus anseios e muito menos pode corresponder a eles; é até capaz de recear que nem sequer exista propriamente uma sociedade. Esta deve ter uma “unidade psicológica e emocional”, ou uma “comunidade de idéias e valores” (Linton), a ser decodificada em linguagem concreta, em ações. A torcida em um estádio de futebol não é sociedade, porque os laços que unem os seus integrantes são muito limitados no tempo e no espaço; são demasiado superficiais e passageiros. Acabado o jogo, acaba-se a coesão. Mas se a malta ficasse confinada por alguns meses, desenvolveria idéias em comum e interesses mais sólidos – ou então partiria para o conflito puro e simples em nome da sobrevivência bruta, individual ou de sub-grupos, como no “Ensaio sobre a cegueira”.

A instituição do Ministério Público pressupõe a consolidação de um território, uma história e, principalmente, formas complexas de acomodação e organização do comportamento intersubjetivo. O promotor não é o inventor da sociedade nem do direito, e sim o contrário.

Jornal de Brasília

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