Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT

O livro mais conhecido do mais conhecido escritor brasileiro – Dom Casmurro e Machado de Assis – é um romance de formação narrado pelo próprio personagem central, Bentinho, que conta sua trajetória quando já está velho, viúvo, solitário e, sobretudo, corroído pela amargura, atormentado pela ofensa (e pela falta de perdão) de uma traição dupla. Seu grande amor e seu grande amigo, Capitu e Escobar, uniram-se contra ele em consórcio erótico e até tiveram um filho que Bentinho achava de início que era seu mas o tempo se encarregou de fazê-lo descortinar tudo.

Há quem ache que essa história não passa de fantasia. Bentinho sentia ciúme doentio e inventou um caso que jamais existiu, a ponto de acolher a semelhança física entre o filho e o amigo como um lance de delírio solipsista. Afinal, ele não expõe a cena (ou as cenas, não se sabe quantas foram ou teriam sido) do adultério, o que era impossível porque ele não pode expor o que não viu. Ele expôs o que viu e, quanto ao resto, juntou as pontas por força do raciocínio e da intuição.

Pois bem. O problema aqui não é de conteúdo factual e sim pré-factual, ou seja, epistemológico. Epistemologia é o ramo da filosofia que investiga a natureza do conhecimento ou, por outra, o conhecimento do conhecimento. Todas as vezes que formula os seguintes questionamentos – “como sabe disso?” ou “tem certeza?” –, você está propondo um debate de natureza epistemológica.

Você pode duvidar do relato de Bentinho, se quiser. Mas você não tem como responder à pergunta “como você sabe que Bentinho está faltando com a verdade?” a menos que existam invencíveis problemas intrínsecos ou que haja ao menos uma segunda versão. Mas todos os demais personagens, principais e coadjuvantes, já haviam morrido e não deixaram qualquer versão. Tertium non datur: ou você acredita em Bentinho ou não acredita em nada.

Jornal de Brasília - 26/7/2023

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