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Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT

No filme “O silêncio dos inocentes”, Clarice, uma estagiária da Polícia Federal dos EUA (FBI), é enviada em missão para conversar com um sujeito na cadeia e tentar obter informações sobre outro sujeito, que está cometendo crimes em série e cuja identidade é ainda ignorada. O preso é um homem perigosíssimo, porém culto, fino, cheio de lordezas.

De início, ele se sente duplamente humilhado: mandam uma estagiária para falar comigo. Estagiária! E ela vem com discurso ensaiado e quer que eu preencha um formulário! Como se isso não bastasse, tem sotaque do interior e usa sapatos pobrinhos. A que nível cheguei!

Acontece que Clarice de imediato passa a desobedecer às instruções superiores e conquista o interesse e o respeito do preso. Ele se encanta com ela, e não é para menos. Clarice é arguta, infinitamente mais que seu chefe, e consegue, sozinha, o que uma equipe policial inteira não conseguiu. Quando não sabe mais que o subordinado, o chefe tende a ser um panaca, um fantoche.

O preso gosta de jogos mentais e não entrega o ouro de bandeja. Psiquiatra de formação, quer conhecer Clarice melhor, inquire sobre seu passado, brinca com charadas – e ela se sai brilhantemente de tudo isso. Ao revelar que ficou órfã e fugiu de seu lar de adoção, o preso belisca a hipótese óbvia de que foi abusada pelo homem da casa, mas ela rechaça com veemência a suspeita: “não, ele era um homem muito decente”.

Eis onde eu queria chegar: será que isso não é tudo? Uma vida inteira para ser lembrado como um “homem muito decente”, a despeito do sotaque, dos sapatos e do resto. O preso era um indivíduo de intelecto superior, mas não adianta citar Marco Aurélio de memória e comer o fígado do entrevistador do censo; ele nunca receberia de Clarice esse mesmo elogio. Ou melhor, essa constatação. A decência é mais um juízo de fato do que de valor.

Jornal de Brasília - 16/8/2023

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