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Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT

Todo o poder emana do povo. É o consta do artigo 1o, parágrafo único, da Constituição Federal. Logo de cara é apresentado esse cartão de visita, que oferece a importância histórica e política de seu conteúdo. Mas o que ele significa juridicamente? Será uma lei fundante da nação? Um mito imemorial? Um ideal a ser perseguido? Um leito de Procusto? Um pretexto retórico?

Os candidatos aos termos mais fortes do artigo são: PODER e POVO. Comecemos pelo último. Que povo? A população do país? Esse dado é fácil de se apurar pelos censos do Governo ou escrutínios da Justiça Eleitoral. Acontece que, nas sociedades abertas, em que milhões e milhões de indivíduos convivem sob o mesmo teto constitucional e legal, é notoriamente impossível a homogeneidade de um querer. E também de um não querer -- “idem velle atque idem nolle, ea demum firma amicitia est” --, até em assuntos cretinos como aborto e drogas.

Daí porque a segunda parte do dispositivo se contenta com algo mais modesto: o povo exerce o poder “por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Esse adendo revela que o respeito à vontade da maioria é apenas uma técnica matemática factível (e que depois se usa como um fetiche discursivo), e que são discutíveis alguns detalhes operacionais, como urna de papel ou eletrônica e outras questões administrativas. O adendo é um convite à humildade ou à humilhação, dependendo da perspectiva, de que “nem” todo o poder emana do povo. Os Drs. Stockmanns da vida estão aí para mostrar a diferença entre “o estado sou eu” de Luis 14 e seus sucedâneos mais ou menos descarados, e os resultados visíveis de uma greve de caminhoneiros ou lixeiros.

Povo e poder: há entre esses conceitos, Horácio, uma ponte de madeira daquelas com dormentes balouçantes que às vezes despencam num fosso cheio de monstros famintos. Melhor não atravessá-la assobiando.

Jornal de Brasília - 17/4/2024

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