Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT
O livro-assinatura de José Saramago, “Ensaio sobre a cegueira”, de 1995, antecipa e amplifica um problema manifestado pela pandemia da Covid-19. Diante de uma doença altamente infectante mas misteriosa -- não há a menor pista do motivo de as pessoas cegarem de repente, vendo tudo branco, apesar da perfeita integridade ocular –, o governo isola compulsoriamente as primeiras vítimas. Elas são encaminhadas a um asilo e recebem rações alimentares, mas nenhum cuidado médico ou de qualquer outro gênero. Que se virassem por conta própria – e o resultado previsivelmente é um desastre.
A medida profilática em nada ajudou o mundo lá fora, que continuou padecendo de contaminações sucessivas mais e mais rápidas, até que todas as pessoas (menos uma) fossem pegas pelo mal branco. O isolamento não ajudou sequer no retardamento da epidemia, a fim de que o fenômeno pudesse ser mais bem compreendido. Mas prejudicou imensamente os cativos, que saíram piores do que quando entraram. Muitos nem saíram.
E a cura voltou tão repentinamente quanto apareceu, sem a colaboração das autoridades sanitárias nem de especialistas na matéria.
Acontece que Saramago escreveu um romance de continuação, “Ensaio sobre a lucidez”. Nas eleições seguintes à cegueira, é computada imensa quantidade de votos em branco: um segundo “mar de leite”. Dessa vez o governo faz o seguinte: abandona a cidade, na expectativa de que, sem ordem, as pessoas arrepender-se-iam da maneira indigna como votaram e implorariam para que seus políticos voltassem. Como isso não acontece, são feitos ataques de sabotagem para espalhar o terror.
Estado de mais ou Estado de menos: eis um problema que se requenta quando o assunto é saneamento, vacinas, cadeias, enchentes e bombas. Mas é também uma oportunidade para se relembrar o que é o Estado, antes de lhe imputar os predicados de praxe.
Jornal de Brasília - 29/5/2024
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