Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - Corrupção é um problema sem solução. Mas dá para resolver (Parte 2 — O bêbado)

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Sérgio Bruno Cabral Fernandes
Promotor de justiça do MPDFT

Temos a tendência de olhar para os corruptos apartados de seu habitat. Isso traz uma visão distorcida do problema e, consequentemente, atrai soluções ineficazes. Em vez de olhar apenas para o corrupto, é preciso olhar para o “ecossistema da corrupção”. O corrupto é apenas um dos elementos de um sistema complexo. Isoladamente tem pouco valor. Porém, quando colocado no contexto podemos entender suas relações. Como nasce um corrupto? Onde vivem? Como se alimentam? Como se reproduzem?

Um bêbado estava agarrado a um poste de luz olhando para o chão a sua volta. Quando um guarda se aproximou e questionou o que ele estava fazendo, o bêbado respondeu que estava procurando suas chaves. O guarda então, solícito, perguntou se foi ali que ele deu falta das chaves. Eis que o bêbado respondeu que na realidade ele havia perdido as chaves no parque, a duas quadras dali. Porém, como lá estava muito escuro, resolveu procurar perto do poste.

A anedota acima ilustra a tendência de se procurar a solução de um problema onde é mais fácil, e não onde seria mais provável de se encontrar a resposta. É um exemplo de viés cognitivo, ou seja, atalhos tendenciosos que nosso cérebro gosta de trilhar para economizar energia, mas que acabam desfigurando a realidade. Tenha em mente, portanto, que o cérebro humano costuma nos pregar peças. Ele não é tão confiável quanto pensamos.

E como escapar dessas armadilhas sedutoras? A principal medida para evitar “abraçar o poste de luz” está condensada em uma máxima do Pensamento Sistêmico, segundo a qual devemos “Acolher a Complexidade”. Um problema complexo não é algo a ser simplificado, mas sim uma realidade a ser compreendida.

Em outras palavras, reconheça e encare os problemas complexos como são e, a partir daí, tente resolvê-los. Isto é, não tente simplificá-los à força, de maneira artificial e casuísta, como quem tenta colocar uma palmilha número 42 num calçado 38. Pode até caber, mas vai te dar uma incômoda bolha no pé e, a longo prazo, um problema no joelho.

Olhando de relance, parece um conselho banal. Entretanto, acredite, esse ponto é crucial. Qualquer tentativa de se resolver um problema complexo sem partir dessa premissa simples vai te levar a um lugar diferente do que você deseja.

De fato, a causa de todos os problemas relevantes no mundo tem sua origem exatamente nesse descompasso entre como o mundo funciona na realidade e a forma distorcida como o enxergamos.

Quando se acolhe a complexidade abre-se a possibilidade de se enxergar o mundo como ele realmente é. Um mundo formado por sistemas e relacionamentos. A palavra sistema significa “colocar junto” para que as partes “fiquem de pé”, isto é, tenham coerência. Pensar sistemicamente nada mais é do que pensar dentro do contexto. Contextualizar, por sua vez, é perceber e identificar relações.

Sistemas complexos produzem comportamentos inéditos, que não existem nos elementos do sistema quando vistos de modo isolado. São características que desaparecem quando reduzimos o sistema aos seus elementos constituintes.

O nome desse atributo que resulta do todo, porém não é encontrado nas partes, é propriedade emergente. Na teoria da complexidade diz-se que o sistema, como um todo, é diferente da soma das suas partes. Dito de outro modo, a propriedade emergente é uma terceira coisa, não encontrada na mera soma dos elementos do sistema. Por exemplo, a água é uma propriedade emergente da junção de duas partículas de hidrogênio e uma de oxigênio (H2O) e nenhum desses elementos, individualmente, possui a característica de ser úmido ou molhado. Essa qualidade somente aparece quando essas moléculas se relacionam.

Para enxergar as propriedades emergentes de um sistema, precisamos adequar nossa forma de pensar aos problemas que queremos resolver. Pensar em linha reta não resolve problemas de um mundo feito de curvas, voltas e espirais. O pensamento puramente cartesiano, analítico e linear é míope para enxergar contexto, padrões e relações. No entanto, é justamente nestas propriedades que estão as principais informações que precisamos.

O pensamento sistêmico, mais adequado para entender a complexidade do mundo real, desenvolveu-se de modo pioneiro na Biologia, no início do século XX, a partir de perguntas que hoje são intuitivas: Como é possível entender o comportamento de uma espécie, sem enxergar as informações contidas no (ecos)sistema onde o indivíduo está inserido? Os biólogos compreenderam que não era possível encontrar respostas olhando apenas para o animal, separado de seu habitat. Isto é, as respostas estavam nas relações e não no indivíduo.

De fato, se você fatiar o sistema e olhar apenas para seus elementos, não entenderá que a cor dos pelos ou penas daquele animal está intimamente conectada à cor da vegetação onde ele vive, ou que a anatomia do seu corpo está relacionada à forma como se alimenta.

Os fundamentos da teoria da complexidade não estão restritos a sistemas de plantas e animais. Sistemas sociais também seguem a lógica e os princípios que regem os demais sistemas complexos.

Por exemplo, impunidade não é um problema relacionado a um elemento isolado. Não é sobre deixar de punir um corrupto. Trata-se de um bug do sistema. Essa falha não é gerada pelo corrupto “x” ou “y”, mas pelos relacionamentos produzidos pelo sistema. Se você separar todos os elementos do sistema, não conseguirá identificar “a causa” da impunidade. Isso porque ela é um produto emergente de um sistema cujas relações estão viciadas.

Temos a tendência de olhar para os corruptos apartados de seu habitat. Isso traz uma visão distorcida do problema e, consequentemente, atrai soluções ineficazes. Em vez de olhar apenas para o corrupto, é preciso olhar para o “ecossistema da corrupção”. O corrupto é apenas um dos elementos de um sistema complexo. Isoladamente tem pouco valor. Porém, quando colocado no contexto podemos entender suas relações. Como nasce um corrupto? Onde vivem? Como se alimentam? Como se reproduzem?

A procura por essas respostas descortinará uma complexa teia de relações formadas por amizades fabricadas, convites dissimulados e homenagens imerecidas. Relacionamentos premeditados, cuja propriedade emergente carrega um DNA comum: a promiscuidade entre agentes públicos e particulares.

Quanto mais complexo o problema, maiores as chances de nos jogarmos nos braços de mentiras aconchegantes em vez de encarar os olhos das verdades inconvenientes. Reconhecer e acolher a realidade como ela é, confusa e desordenada, é incômodo. Mas manterá seus pés em terra firme. Condição indispensável para ter clareza de pensamento e olhos pra ver. Portanto, se quiser entender como um corrupto sobrevive, se adapta e evolui, não procure no indivíduo, olhe para o ambiente onde vive e observe seus relacionamentos.

Correio Braziliense: 2/6/2024
Disponível também em: https://medium.com/@sbrunocf 

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