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Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT

Recentemente, Monteiro Lobato andou acusado de racismo e houve quem defendesse que passagens (ou títulos inteiros, sei lá eu) de sua obra fossem suprimidas, a fim de evitar escândalos ou desconfortos.

Qualquer autor escreveu, por óbvio, na própria época em que viveu, mas, não tão obviamente, pode ou não nela mesma ter sido reconhecido. Pode ter sido reconhecido mas caído no oblívio ou talvez não tenha repercutido senão postumamente, sem garantias de que voltará ao anonimato, em definitivo ou não; nem Shakespeare foi unanimidade absoluta. Essas reviravoltas dependem de fatores variados e um deles é a cor axiológica da lâmpada da cabeceira. Ou seja, as condições objetivas que permitem que as palavras sejam decifradas, dado que é impossível ler na escuridão total.

O que alguém redigiu quando a escravatura era uma prática hoje tida como moralmente ignóbil, mas então juridicamente válida e amplamente explorada – não é tanto o caso de Lobato, que mal tinha completado 6 anos e devia ser analfabeto em 13.5.1888 – não o seria na ressaca da Lei Áurea, que ainda não curou o pileque por completo. Hoje, é improvável que conseguisse publicação e, se o fizesse, o mais provável é que se encrencasse na Justiça. Vejam o que aconteceu com Tiririca, que cantou uma música que dizia “essa nega fede” (e não “todas as negras fedem”).

O mundo literário é composto por uma enormidade de lâminas diegéticas, cuja articulação depende da habilidade tanto do autor quanto do leitor. Lobato, um dos maiores escritores que o Brasil já produziu, pode ter posto na boca de um personagem uma oração racista com a qual compartilhava em seu conteúdo, mas pode ter feito o contrário, porque o personagem é o vilão da trama e suas posições são indefensáveis. Nenhuma frase que começa com “Shakespeare disse que” está correta. Quem disse foi Falstaff, Cinna ou Catarina.

Jornal de Brasília - 5/6/2024

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