Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT

Michael era um adolescente alemão que tinha tudo para namorar Sophie, uma loirinha linda que andava caidinha por ele. Eles eram colegas de escola e tinham histórias de vida que deviam ser parecidas. Ninguém estranharia se Michael anunciasse que os dois firmaram e estavam apaixonados. Sophie era o óbvio.

Mas o coração tem razões que a razão desconhece e Michael sabia disso ao empenhar o seu à atípica Hanna, que contava com o dobro de suas primaveras e esbanjava um jeito crispado, bruto, com cicatrizes profundas de um passado não tão profundo assim e que um dia ele descobre sem querer: a moça trabalhara em um campo de concentração. Quando eles se conheceram, o país estava em um clima de relativa normalidade, ainda pagando os boletos da desnazificação, mas do jeito empedernido de quem quer virar a página e até mesmo tirar alguma vantagem. A garçonnière de Hanna era um resumo do mundo lá fora.

Hanna não tinha feito o Heil Hitler, ao menos não no sentido ideológico de dourar a pílula da superioridade racial. Ela só estava procurando uma ocupação que pagasse seus próprios boletos e, em tempos de guerra, não fazia tanta diferença laborar em um banco, em um escritório de contabilidade ou para o governo. Mas o “espírito do povo” também tem razões misteriosas e o romance com Michael acaba com o sumiço repentino da lass. Ela foi presa e nunca mais saiu da cadeia.

Esse filme, “O leitor”, tem uma cena memorável. Em uma das “marchas para a morte”, é dada ordem para se trancar os prisioneiros em uma igreja, que pega fogo. Quase todos morreram. O juiz pergunta para Hanna se ela permitiu isso e ela, claro que sim. Era a vez de Hanna ser óbvia: era guarda, sua função não era guardar? E então indaga, mais na curiosidade do que na indignação: o senhor teria feito o quê? O juiz não responde. Juízes não costumam responder a perguntas de réus.

Jornal de Brasília - 17/7/2024

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