Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT
“Toda a gente que eu conheço nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida… Arre, estou farto de semideuses!” (Fernando Pessoa, 1914).
Talvez você se lembre da Blitz, uma banda de música pópi brasileira, que lançou um LP com as duas últimas faixas riscadas. É que as canções foram censuradas quando a tiragem inicial já estava prensada, e arranhá-las foi uma medida de economia e, ao mesmo tempo, jogada de marketing e protesto. A garotada até tentava ouvir alguma coisa – um “bunda”, talvez? --, mas era impossível. Nesse esforço inútil, a agulha da vitrola perigava estragar.
Os tempos ainda eram de censura, que trabalhou muito, em nome da moral e dos bons costumes. Não que moral e bons costumes não existam e não sejam importantes. O problema é confiar a um grupo obscuro ou a um único indivíduo, mesmo que ilustre, a autoridade jurídica para decidir o que pode e o que não pode. E esse problema é antigo.
Na época do Império, havia o Conservatório Dramático, encarregado de fazer, noves fora, a mesma coisa. Quem atuou ali foi ninguém menos que Machado de Assis, que deu à vontade suas tesouradas. Por exemplo, em 27.10.1862, ele vetou a comédia “A mulher que o mundo respeita”, acoimando-a de “uma baboseira” e “um episódio imoral, sem princípio nem fim”. Mas, antes de integrar o órgão, Machado o criticou sem cerimônia.
No exterior não foi diferente. Autores famosos também tiveram problemas dessa natureza, como Flaubert – que lançou o maroto recurso do “Emma sou eu” –, Joyce, Wilde, Orwell, Miller e tantos outros. Sobrou até para o chatérrimo Salinger.
A tesoura da Blitz cortou 2 músicas, mas não riscou o resto do disco nem fechou a conta da banda, ou seja, outros discos futuros. Se valia pena ouvir as faixas censuradas, não sei. Mas, se for para danificar a agulha da minha vitrola, prefiro eu mesmo fazê-lo.
Jornal de Brasília - 24/7/2024
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