Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT
Amós Oz dizia que todas as fronteiras são relativamente arbitrárias. O termo forte dessa oração é o advérbio de intensidade. De fato, limites traçados pela humanidade não são de todo caprichosos, mas também não são dados como as árvores nativas e os pássaros que piam e descansam em suas copas.
Vamos aplicar o raciocínio ao laboratório antropológico do trânsito. Nesta via, a velocidade máxima é de 60 km/h, naquela outra, é de 80, e assim por diante. Essa distribuição obedece a um exercício de racionalidade – ruas residenciais não permitiriam que automóveis chegassem a 100 nem seria razoável que, no Eixão, não passassem de 30 --, mas os números propriamente ditos talvez fossem outros. 60 facilmente transformar-se-ia em 56 ou 64, ou 58 e 62; a opção redonda favorece a memorização e o automatismo da conduta, mais do que se submete a um padrão técnico elaborado sem sombra de dúvida. Acontece que, uma vez fixado 60, 60 é. Poderia ser 65 e, se assim fosse, 65 seria. A partir daí, todos devem se adequar, gostando ou não, concordando ou não.
No fundo, o que gostaríamos é que o 60 valesse para os outros, não para nós mesmos. Quem dera se houvesse uma faixa exclusiva para mim, ou que eu dirigisse à toda sem consequências porque é muito irritante ficar preso no tráfego. Tivesse eu o anel de Giges, conduziria minha Ferrari 250 GTO sem placa e não seria pilhado por reles pardais, por mais que os demais motoristas me xingassem e desejassem que eu batesse na traseira de uma jamanta e me lascasse.
E aqui vem o detalhe: o que o 60 significa. Se é o limite do perigo e o controle é na faixa de 59/60, ou se é algo a ser afastado na prudência de 50/52, estourando 55/57. Ou seja, se é uma coisa inerentemente benéfica, uma funcionalidade circunstancial ou um mal necessário. Aquela do “jursisten, böse Christen” é velha, mas nem todos conhecem.
Jornal de Brasília - 23/10/2024
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