Sergio Bruno C. Fernandes
Promotor de justiça do MPDFT
Soluções óbvias como punir o Jênio ou “aumentar a fiscalização” têm eficácia diretamente proporcional à sua falta de criatividade. Problemas complexos, como mudar o comportamento de um grupo de pessoas, exigem imaginação.
Hoje qualquer idiota sabe o significado da palavra idiota. Mesmo em outras línguas não é difícil: idiot (inglês); idiot (francês); idiota (espanhol); idiot (alemão). Nos países onde parece haver menos idiotas por metro quadrado, a tradução é a mesma. Em sueco, em dinamarquês e em norueguês, a tradução é idiot. Porém, na sua origem a palavra idiota não significava uma pessoa tola, burra ou estúpida.
Na Grécia antiga participar da vida pública era um dever do cidadão. Os que se engajavam nos assuntos coletivos eram chamados de polites. Já aqueles que se interessavam apenas por questões particulares e ficavam alheios às questões públicas eram chamados de idiōtēs. Não era considerado um xingamento. Um idiote era apenas uma pessoa desprovida de virtudes. Uma pessoa limitada, que não contribuía para o bem comum.
Idiotes deixam rastros. Quem caminha, corre, pedala ou passeia com o cachorro pela cidade, já reparou numa pegada muito particular deixada pelos idiotes. São as garrafas verdes da famosa cerveja, que tem presença destacada nas margens das ruas.
Mesmo em lugares onde o Serviço de Limpeza Urbana-SLU é eficaz, a garrafa verde parece brotar nos gramados em quantidade maior do que o lixo tradicional. Mas afinal, por que em lugares com razoável nível de limpeza a garrafa verde se destaca?
A resposta ficou óbvia quando testemunhei alguém lançando a garrafa verde pela janela de um carro em movimento. Percebi que não se trata apenas de jogar lixo na rua. Ao que parece, o lançamento de garrafas verdes de carros em movimento, especialmente durante a madrugada, é um ritual. Tudo indica que a prática não segue nenhuma tradição cultural, como quebrar pratos em casamentos. Provavelmente trata-se apenas de pequena transgressão, um desafio às autoridades e normas urbanas vigentes, feito por pessoas carentes de estímulo e excitação em suas vidas cotidianas. Essa “rebeldia sem causa” proporciona shots de dopamina em cérebros com espaço ocioso.
Ou pode não ser nada disso. Seja qual for a explicação, o certo é que o fenômeno demonstra uma falta de conexão entre os lançadores de garrafa e a cidade em que vivem.
Simplesmente xingar de idiota quem joga garrafa pela janela não resolve o problema e limita as soluções. Também não dá pra chamar de “aquele desprovido de virtudes e que não se interessa pelo bem comum”, porque é pouco didático. Prefiro denominar essa pessoa como O “Jênio” da Garrafa Verde, ou apenas Jênio para simplificar.
Pois bem, e como resolver esse problema? Soluções óbvias como punir o Jênio ou “aumentar a fiscalização” têm eficácia diretamente proporcional à sua falta de criatividade. Problemas complexos, como mudar o comportamento de um grupo de pessoas, exigem imaginação. Buscar uma solução, olhando de forma isolada para o elemento que deu causa ao problema (o Jênio) ou para quem tem a obrigação de resolver (o Estado-SLU) terá o mesmo efeito que tentar se embriagar com cerveja sem álcool.
A solução de problemas complexos demanda soluções sistêmicas. É preciso intervir nos relacionamentos do sistema. A relação mais importante neste caso é a que existe entre o Jênio e a “Dona da Garrafa”. É claro que, pensando linearmente, a cervejaria não tem culpa da “jenialidade” de alguns de seus consumidores. Porém, culpa e responsabilidade não se confundem.
Se pensarmos na solução do problema na perspectiva da responsabilidade com a cidade, fica fácil concluir que a Dona da Garrafa não pode ficar assistindo a tudo da arquibancada.
Repare que esse fenômeno é peculiar, porque ocorre predominantemente com a garrafa verde. Não se vê garrafas transparentes ou de outras bebidas na mesma quantidade e contexto. O Jênio gosta é da garrafa verde. Há, portanto, uma relação estabelecida entre eles. E é justamente por isso que a Dona da Garrafa tem um papel importante na solução do problema.
Em outras palavras, se, por um lado, ela não tem “culpa”, por outro tem responsabilidade perante a cidade onde vende seu produto. Certamente, a Dona da Garrafa não é alheia às questões públicas, ao bem comum dos habitantes de Brasília. Em outras palavras, a Dona da Garrafa é polite e não idiote.
As campanhas de marketing da cervejaria constroem um relacionamento fiel entre a marca e os consumidores. Essa relação não é baseada apenas na qualidade da bebida, mas especialmente na construção de uma identidade. Beber a garrafa verde é cool, faz o bebedor pertencer a um grupo seleto de pessoas descoladas, cujo estilo de vida é marcado por festas e diversão.
Ora, se é possível criar uma relação de lealdade entre os Jênios e a garrafa verde, seria possível criar uma relação de respeito com a cidade em que vivem e se divertem? Dito de forma simples, por que não usar a mesma energia criativa para incentivar os Jênios a não jogarem a garrafa verde pela janela do carro?
Se o tema parece um grão de areia comparado a outros problemas da cidade, lembre que desertos são feitos de grãos de areia. O problema não é exclusivamente sobre lixo ou segurança de quem anda na rua. É sobre se importar com a cidade, com o espaço público. É sobre ser mais polite e menos idiote. A mesma lógica pode ser transportada para outros problemas urbanos, basta ser criativo.
Portanto, a melhor forma de mudar esse hábito jenial não é com multas ou dobrando o trabalho do SLU, mas sim incentivando outro ritual que possa substituir o existente. O ator mais poderoso para mudar esse costume idiota não é o Estado. As chances de o SLU convencer, com “campanhas de conscientização”, um Jênio a parar de praticar o lançamento de garrafas na madrugada é tão remota quanto persuadir os brasilienses a pararem de beber cerveja numa tarde quente e, nas palavras do ex-candango Oswaldo Montenegro, irem embora de Brasília num submarino do lago Paranoá.
A Dona da Garrafa Verde, por outro lado, possui um relacionamento com os Jênios. Eles respeitam e admiram a marca. Esse é um trunfo importante. Se a cervejaria participar da cidade, colocando seus criativos marqueteiros para mudar esse hábito, ganhamos todos. Não apenas os brasilienses (os polites e os idiotes) mas em especial a Dona da Garrafa, que melhoraria muito a sua imagem nesta cidade construída, também com muita criatividade, no centro de um planalto vazio.
Por tudo isso, senhora Dona da Garrafa Verde, anote por favor o meu pedido: “Contribua para o bem comum, participe da cidade e ajude a colocar o ‘Jênio’ de volta na garrafa”.
Medium - 24/10/2024
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