Sérgio Bruno Cabral Fernandes
Promotor de justiça do MPDFT
O Presidente Lula estava sentado num banquinho no banheiro do Palácio da Alvorada, cortando as unhas do pé. Consegue visualizar a cena? Pois bem, quando faltava apenas dar aquela arrematada no mindinho, ele resolveu dar uma alongada nas costas, se desequilibrou, caiu e bateu a cabeça. Devido ao acidente, Lula não foi à reunião dos países que formam o BRICS.
Por outro lado, quem não ia à Rússia, e acabou indo, foi o presidente Nicolás Maduro. O Brasil é o maior empecilho para a entrada da Venezuela no bloco econômico. Maduro resolveu aparecer de surpresa na reunião para pressionar os demais membros do grupo. A ausência de Lula deixou Maduro à vontade para fazer seu lobby.
Esses são os fatos noticiados. A partir daqui são hipóteses.
Pense em como teria sido se Lula tivesse ido. Putin certamente teria dedicado grande parte de sua atenção ao presidente brasileiro. Seja pela relevância do Brasil no bloco ou, talvez, por gratidão pela complacência do Brasil em relação à invasão à Ucrânia. O certo é que a ausência do brasileiro criou um vácuo na agenda do líder russo.
A lacuna criada por aquele que ia e não foi (Lula) acabou preenchida por aquele que não ia e foi (Maduro). Imagine que Putin, carente de um sangue latino e em busca de um alma cativa, adotou Maduro como seu convidado de honra. Não por prazer, mas por antever uma oportunidade de ampliar sua influência no continente sul-americano.
Seguindo um pouco mais nesse exercício de imaginação, suponha que o líder russo transformou meras conversas informais com Maduro numa “mentoria” para ditadores. No primeiro módulo o tema foi: Como tirar o foco dos problemas internos: Invadindo um país vizinho.
Considere que Maduro adorou o workshop e, aluno aplicado, voltou decidido a fazer o dever de casa. Assim, abastecido pelo apoio moral do coach, o venezuelano resolve colocar “fogo no parquinho”, começando pela invasão da vizinha Guiana.
Em sistemas complexos não há eventos isolados. Um conflito localizado abaixo do Caribe nunca é “local”. Ele certamente repercutiria nos vizinhos de cima (EUA e outros) e de baixo (Brasil e outros). Ou seja, seria mais um conflito a somar-se à delicada situação geopolítica atual do mundo.
Ainda no campo da cogitação, suponha que a aventura de Maduro ganhasse força e o continente americano se transformasse numa área de confronto entre nações. A rivalidade aumentaria a chama da possibilidade de uma terceira guerra de proporções globais.
Se você acha esse cenário hipotético exagerado, lembre-se de que um certo dia, numa manhã de julho de 1914, um estudante de 19 anos, rejeitado pelo exército sérvio por ser muito pequeno e fraco, assassinou um arquiduque austríaco e a esposa na pequena cidade de Sarajevo. Esse homicídio de dois indivíduos é considerado o estopim da Primeira Guerra Mundial, que causou a morte de vinte milhões de pessoas.
Caso a hipótese de uma guerra latina se concretizasse e o mundo entrasse em ebulição, no futuro, historiadores iriam analisar os fatos e concluir que a ausência do Presidente brasileiro na reunião do BRICS foi decisiva para o início da guerra.
Analistas políticos concluiriam que se Lula tivesse ido à Rússia e mantido Maduro isolado, tudo seria diferente. Porém, o acidente doméstico do presidente do Brasil bagunçou o tabuleiro. Ou seja, os livros de História registrariam que a unha do mindinho do pé esquerdo do presidente foi o marco zero do início da terceira guerra mundial. Ela seria o equivalente à morte do arquiduque austríaco, porém com menos glamour.
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo…
A especulação mambembe descrita serve para ilustrar uma característica fundamental dos sistemas complexos, a qual desafia nossa intuição natural. Política, relações internacionais e ditaduras operam de forma não-linear. Isto é, nos sistemas sociais complexos não há proporcionalidade entre causa e efeito: pequenas ações e omissões (inputs) podem gerar enormes resultados (outputs)
Dessa forma, erros ínfimos podem causar consequências colossais.
A assimetria entre causa e consequência não ocorre em sistemas simples, onde inputs e outputs são em regra proporcionais. Se você colocar 10 gramas de grãos de café na sua cafeteira (input) receberá um espresso de aproximadamente 20 ml (output). Dobrando a quantidade de grãos, terá um doppio de 40 ml. Essa proporcionalidade entre a causa (grãos) e a consequência (café espresso) traz uma vantagem extremamente poderosa quando se lida com sistema simples, qual seja, a previsibilidade de consequências futuras. Se eu dobrar os grãos, eu sei de antemão que terei o dobro da bebida.
Isso ocorre porque, em sistemas lineares, a soma dos elementos é igual ao resultado. Grãos de café moídos, adicionados à água quente, resultam num espresso. Ou seja, conhecendo-se as partes podemos estimar o resultado.
Assim, sabendo-se quais as variáveis dos sistemas simples, é possível “prever o futuro”.
E é justamente desse modo, linearmente, que nosso cérebro tende a fazer conexões entre causa e efeito. O nosso “padrão de fábrica” quando tentamos entender o mundo é aplicar a lógica de sistemas lineares, onde espera-se que causa e efeito sejam proporcionais.
Isso ocorre porque o cérebro humano naturalmente procura padrões e gosta de previsibilidade. Ele adora quando consegue estabelecer relações diretas, equilibradas e proporcionais entre causa e efeito. E resiste a aceitar que uma pequena mudança inicial possa causar um grande resultado. Ou que um grande evento possa ser explicado por uma causa banal.
Trata-se de um padrão cognitivo chamado de viés da proporcionalidade (proportionality bias). O conceito explica, dentre outros fatos, por que algumas pessoas são seduzidas a acreditar em Teorias da Conspiração.
Quando olhamos para um resultado de grande magnitude como, por exemplo, o assassinato de John F. Kennedy, então presidente do país mais rico e poderoso do planeta, temos a tendência de procurar uma explicação (causa) igualmente grandiosa, como um intrincado complô envolvendo a CIA ou a máfia, e não uma causa simples e tacanha como um atirador com problemas mentais agindo sozinho.
Pela mesma razão, temos dificuldade em aceitar que algo tão abstrato como o aumento da emissão de gases do efeito estufa pode tornar inviável a vida humana no planeta. É mais intuitivo acreditar que só poderíamos ser destruídos por algum fenômeno proporcionalmente grandioso, como o choque de um asteróide de dimensões compatíveis com o tamanho da Terra.
Porém, a realidade segue uma lógica bem diferente.
Nos sistemas complexos não há relação direta e proporcional entre causa e efeito. Uma GRANDE causa pode gerar pequenos efeitos, como o caso do “bug do milênio”, o qual acreditava-se que traria problemas na infraestrutura dos países, o caos no sistema financeiro e até o lançamento acidental de armas nucleares. As consequências, entretanto, foram inofensivas.
Da mesma forma, eventos banais podem culminar em resultados extremos. Diz a lenda que Jack Daniels (que dá nome ao uisque) morreu após perder a paciência e chutar seu cofre por não estar conseguindo abri-lo. Por conta da pancada, ele quebrou o dedo do pé, o qual infeccionou, causando a morte de Daniels por complicações associadas à gangrena.
Uma outra forma de explicar essa desproporção entre causa e efeito é dizer que os sistema complexos são altamente sensíveis às condições iniciais. Isto é, pequenas variações na causa inicial de algo não necessariamente irão repercutir de modo proporcional nas consequências futuras. E isso é difícil de estimar, pois temos o costume de achar que as condições iniciais serão mantidas ao longo da trajetória de uma sequência causal.
Se você planeja, por exemplo, velejar os mais de 7.500 quilômetros que separam as cidades do Rio de Janeiro e Lisboa para comer um pastel de nata no Chiado e, por descuido, comete um pequeno erro de 10 graus ao traçar a rota, acabará comendo um cuscuz em Casablanca, no Marrocos. Meros 10 graus de alteração inicial irão tirar você da Europa e jogá-lo na África, com mudança radical do cardápio.
Se os exemplos de “pequenos eventos, grandes consequências” dados até aqui estão muito distantes da sua realidade, lembre dos grandes escândalos de corrupção que o Brasil viveu nos últimos anos. Em que pese terem tido enormes consequências econômicas, jurídicas, sociais e políticas, vários desses escândalos tiveram início em razão da trivial compra de um carro.
Pelo zunido das suas asas, você me falou…
A imagem mais famosa sobre essa desproporção entre condições iniciais e resultados envolve o nome do Brasil, mas não tem a ver com corrupção.
É o chamado “Efeito Borboleta”.
Em 1972, o meteorologista e professor do MIT Edward Lorenz proferiu uma palestra cujo título continha uma provocante indagação: “Previsibilidade: O Bater de Asas de uma Borboleta no Brasil Pode Provocar um Tornado no Texas?”.
Na ocasião, ele argumentou que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema complexo, como a atmosfera, podem ter um gigantesco impacto no clima, sendo impossível fazer previsões a longo prazo.
Um pensador linear, ao tomar conhecimento da hipótese de Lorenz, poderia propor a solução simplista de eliminar as borboletas brasileiras (causa) a fim de prevenir tornados no Texas (consequência). Num sistema simples e linear, como uma máquina, talvez essa ideia pudesse ter alguma lógica. Eliminando-se a “causa” do problema, elimina-se a consequência.
Entretanto, em sistemas complexos, esse julgamento não faria o menor sentido. Esses sistemas não seguem uma relação linear de causa e efeito. Complexidade significa algo entrelaçado, com muitas conexões e inter-relacionamentos, os quais produzem características inéditas não previstas inicialmente. Se um dos fatores for removido (como as borboletas), outras interações poderão ocorrer e exercer papel semelhante. Eliminar as borboletas não retiraria a complexidade do sistema e tampouco tornaria o resultado previsível.
Em outras palavras, existem infinitos fatores que poderiam levar a resultados similares. A imagem das borboletas utilizada por Lorenz significa que qualquer pequena alteração na atmosfera (como o vento ou a temperatura) pode desencadear efeitos em cascata com consequências desproporcionais ao tamanho das mudanças nas condições iniciais.
Além disso, não se pode dizer que o “efeito borboleta” é intrinsicamente bom ou ruim. A princípio, ele é neutro. Pode gerar tanto um tornado no Texas, como uma chuva benéfica para as plantações de soja da vizinha Luisiana. Ele apenas altera a sequência de fatos de modo desproprocional e imprevisível.
Portanto, a sensibilidade às condições iniciais dos sistemas complexos não é uma característica necessariamente negativa. Sim, ela torna o nosso dia a dia mais desafiador, pois nem sempre podemos prever o que vai acontecer e constantemente somos pegos de surpresa por grandes eventos resultantes de causas banais. Ou, com frequência, nos frustamos com resultados aquém do esperado, dados o esforço empreendido inicialmente.
‘Darwin’, agora é só você…
No entanto, essa característica é fundamental para a nossa vida. O fato de sistemas complexos produzirem resultados imprevistos e desproporcionais às suas condições iniciais é o que permite o acontecimento de coisas novas e inéditas. É o que causa mudanças e impulsiona a evolução.
Existe, portanto, um trade off entre as perdas causadas pela imprevisibilidade e os ganhos que a criatividade pode trazer. No balanço final, essa troca é extremamente vantajosa.
Charles Darwin teve o seu mais criativo insight, ponto de partida de sua teoria, observando o bico de uma espécie de ave, cujo formato era diferente a depender da ilha que o animal habitava. Apesar de se tratar da mesma espécie de pássaro (os Tentilhões), as características físicas da ave haviam se adaptado às condições encontradas em cada ilha do arquipélago de Galápagos. As aves que se alimentavam de sementes tinham bicos mais robustos e fortes, enquanto aquelas que comiam apenas insetos tinham bicos finos e pontudos.
O estudo desse pequeno aspecto causou uma grande revolução na ciência, permitindo compreender como as espécies se adaptam ao ambiente e se modificam ao longo do tempo.
A Teoria da Seleção Natural, desenvolvida por Darwin a partir da trivial análise do bico de uma ave, somada a diversas outras descobertas científicas que se sucederam, nos permitiu compreender que a evolução das espécies é um processo de pequenas mudanças graduais impulsionadas por pressões ambientais. E estas, após milhões de anos de ciclos de feedback de causa e efeito, geraram resultados imprevisíveis e desproporcionais em relação ao que existia inicialmente.
Assim, organismos unicelulares marinhos, por exemplo, se diversificaram em variadas formas, resultando nos primeiros vertebrados aquáticos. Alguns peixes, por sua vez, desenvolveram adaptações que permitiram sua sobrevivência em terra, gerando os anfíbios. Estes deram origem aos répteis. De um grupo específico de répteis, evoluíram os mamíferos, e de uma linhagem particular de primatas surgiram os hominídeos, dos quais, finalmente, descendemos nós, os Homo Sapiens. Esses seres de pensamento linear que precisam cortar as unhas dos pés.
O nome completo da nossa espécie é Homo Sapiens Sapiens, o que significa “aquele que sabe”. O segundo “Sapiens” do termo complementa a expressão ficando mais ou menos assim “aquele que sabe e (além disso) sabe que sabe”. Ou seja, tem autopercepção, tem plena noção da sua sapiência.
No entanto, apesar disso, nem sempre consegue ver claramente o que não sabe ou o quanto seu saber é tendencioso e está embaçado por pré-conceitos.
Portanto, ter consciência das falhas de raciocínio a que estamos sujeitos, como o viés da proporcionalidade, tem enorme utilidade quando precisamos identificar a verdadeira causa de um problema. Entender a natureza de um imbróglio já é grande parte da solução.
Muitos dos problemas persistentes que enfrentamos, os quais parecem não ter remédio, são justamente resultados de não se conseguir estabelecer uma verdadeira relação entre causa e efeito.
Vemos isso diariamente, tanto no setor público quanto no privado, onde especialistas tentam lidar com a complexidade apenas “eliminando as borboletas”. Contudo, as causas de problemas complexos normalmente estão distantes — no tempo e no espaço- dos sintomas visíveis. Daí a dificuldade de se fazer a conexão correta entre causa e consequência.
Anda, quero te dizer nenhum segredo…
O viés da proporcionalidade, todavia, não ocorre apenas quando analisamos eventos de grandes escalas, como guerras, teorias científicas e crises políticas. Em nossas escolhas diárias também caímos na mesma armadilha.
Daí, o presente tema ser extremamente relevante para as nossas vidas cotidianas.
Prestar atenção nas pequenas coisas do dia a dia, e saber que elas podem ter impactos significativos e imprevisíveis, nos faz viver de forma mais consciente.
Justamente porque o nosso cérebro é predisposto a operar linearmente, isto é, só conseguimos prever grandes consequências se pudermos ligá-las a grandes causas, temos a tendência a dar atenção apenas ao que é aparentemente grandioso. Escândalos, desastres e grandes espectáculos monopolizam nossa atenção, não sobrando espaço para os “pequenos” acontecimentos.
Coisas grandiosas, porém, frequentemente tem origem em condições iniciais singelas, que passam desapercebidas. Ganhar uma medalha de ouro olímpica deriva daquela aula experimental de natação, recomendada pelo médico para a criança com asma. O grande dia da cerimônia de casamento originou-se de uma breve, porém íntima, troca de sorrisos. Da mesma forma, a acumulação de pequenos descuidos ao longo da relação pode resultar num divórcio entre dois estranhos, sem que se possa apontar exatamente a grande causa do fim.
Pense em como um breve elogio de um professor pode construir a carreira de sucesso de uma vida. Ou como o exemplo contido em pequenos gestos de gentileza pode transformar-se no jeito de ser de toda uma comunidade.
Pequenas decisões e escolhas, erros e acertos, podem ter impacto decisivo nos acontecimentos da nossa vida futura, pois são estas “pequenas coisas” que formam as condições iniciais de sucessos e fracassos. Para corrigir rotas ou celebrar chegadas é preciso saber de onde partimos.
A riqueza da vida está na valorização de pequenos momentos e não na acumulação de grandes acontecimentos. Um evento pode ser pequeno, porém profundo. Ou pode ser grande e raso. O valor está no significado, e não na magnitude. Não confundir, portanto, grandeza com importância. Tampouco tamanho com relevância.
Menosprezar esses pequenos inputs é perder uma poderosa fonte de ideias, inspiração e solução de problemas. Uma breve reflexão de minutos, observando o pouso banal de um pardal, pode impactar mais a sua vida do que horas de notícias sobre a última “grande” crise política. Momentos importantes não são precedidos necessariamente de grandes causas. Sua vida não depende de um grande evento para mudar ou ganhar significado. A felicidade genuína é mais fácil de ser encontrada na sequência de pequenas coisas do que em momentos grandiosos.
“The little things? The little moments? They aren’t little”, Jon Kabat-Zinn.
Disponível em https://medium.com/@sbrunocf
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