Daniel Bernoulli
Promotor de justiça do MPDFT
A mãe, notando que o filho chega meio esmorecido da escola, encosta o dorso da sua mão na testa do menino e sente que a temperatura dele não está normal. Ela, então, saca da gaveta um termômetro (talvez o clássico de mercúrio ou esses de encostar no corpo ou ainda uns mais modernos, que basta mirar) e constata: febre.
A democracia, que sempre exigiu uma eterna vigilância, de uma forma ou de outra, também dá sinais quando não está saudável ou é ameaçada. Mais do que isso, ela vive uma crise quando suas instituições são fragilizadas e atacadas, colocadas em xeque.
O Tribunal do Júri é uma dessas instituições que servem de baliza para avaliar a saúde da democracia de um povo. Comparando, é como se o tribunal popular fosse um dos termômetros do Estado Democrático.
No Brasil, o Tribunal do Júri tem previsão constitucional justamente no artigo 5º da Carta Política, dispositivo esse que cuida dos direitos e deveres individuais e coletivos. Apesar de ser uma instituição sempre questionada, o julgamento popular sobrevive desde os tempos do Império, ora com mais poderes, ora com atribuição mais limitada.
Em democracias consolidadas pelo mundo afora, a instituição do Tribunal do Júri é sólida e respeitada, concentra em si não somente julgamentos de delitos contra a vida, como pode - até mesmo - ter atribuição para demandas cíveis de caráter coletivo (indenizações por dano ambiental, por exemplo).
Em contraste, nos espaços autoritários, sua competência é esvaziada, há ampliada permissão de reforma de seus vereditos ou o júri é simplesmente extinto. Parece até lógico: se, na democracia, o poder emana do povo, nos regimes ditatoriais, esse poder é arrancado do cidadão e entregue ao governante.
Um dos princípios basilares do Tribunal do Júri é a soberania dos vereditos. Hoje, juntamente com outros princípios, ela é expressa no texto constitucional que prevê a instituição do Tribunal do Júri.
Em uma análise acurada das Constituições brasileiras, nota-se que esse princípio desaparece das cartas magnas vigentes em períodos de ditadura. Assim, tanto na Constituição de 1937 como na de 1967, a soberania dos vereditos é limada do texto constitucional.
O prejuízo, nesse tocante, é considerável. Retirar do jurado a última palavra acerca dos fatos é tornar todo o Tribunal do Júri um enfeite jurídico, absolutamente desnecessário. Basta apontar para o fato de que o maior erro judiciário brasileiro, o famoso Caso dos Irmãos Naves, deu-se na vigência da Constituição de 1937 - a chamada Constituição Polaca. Enquanto o Júri Popular os absolvia, a falta da soberania dos vereditos permitiu recurso ao Tribunal de Justiça que reformou a decisão, condenando-os.
É nessa linha que criações jurisprudenciais cerceando teses e liberdade de expressão dos debatedores ou mesmo proibindo a apresentação de provas para os jurados, tudo isso deve ser visto sempre com desconfiança.
Não raro se evidencia, em votos e sessões dos Tribunais Superiores, julgadores criticando a instituição do júri ou mesmo declarando serem contrários a ela e sugerindo até mesmo sua extinção. Nada mais natural daquele que é poder constituído menos democrático de todos, formado principalmente por juízes, bem como seus auxiliares (promotores e advogados) forjados por provas e títulos ou indicações políticas e não por voto.
Enquanto se imagina estar preservando essa ou aquela categoria de autor ou vítima, em verdade, essa interferência finda por minar as estruturas do debate dialético que permeia as artérias que fazem pulsar o caráter democrático dos julgamentos pelo povo. O respeito às decisões do júri deveria ser algo quase sagrado, onde somente poderia ser possível sua anulação em situações teratológicas e extremas.
O Tribunal do Júri, portanto, como instituição democrática que é, exige esforço permanente pela sua solidez e preservação. Todas as vezes em que seu procedimento ou seus resultados são confrontados, não é somente ele que é abalado. Em verdade, o mercúrio sobe, o aparelho apita, o visor alerta: algo não caminha bem e se exige atenção, a democracia certamente estará sob risco e os guardiões da Constituição - a Mãe de todas as leis - precisam injetar - não toxinas, mas - os remédios essenciais para o retorno à sua normalidade.
Correio Braziliense - 6/3/2025
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