Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - Espetáculo cultural para 150 detentos por violência contra a mulher desafia machismo estrutural no PDFII e transforma hostilidade em êxtase

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Leise Taveira

Jornalista convidada pelo Projeto Redescobrir para cobrir as apresentações

Pondo em xeque o machismo estrutural, causa absoluta da prática de crimes contra a mulher, o MPDFT, em parceria com a Secretaria da Mulher do DF, promoveu um espetáculo envolvendo sete artistas, deixando em êxtase 150 detentos do PDF II, todos autores de violência contra a mulher, no último dia 18.

Com roteiro cuidadoso, elaborado a partir de dados e situações reais de violência doméstica, entremeados por textos de autores como Bertolt Brecht e canções que falam sobre o desamparo humano e a necessidade da fé para a vida, o evento, inicialmente repleto de incredulidade pelos detentos, resultou em entrega total entre plateia e artistas.

Afinal, a tarde seria diferente: presos de várias celas iriam se encontrar fora da hora de sempre, num pátio comprido, disciplinarmente sinalizado e iriam experimentar lazer e cultura, em companhia uns dos outros. Conduzidos ao local, em relativo silêncio, apenas cumprimentando-se de vez em quando, podiam observar os técnicos de som montando os equipamentos.

Sentando-se nos bancos de concreto frio, ou no chão, homens enfileirados com seus chinelos brancos, em contraste com a pele majoritariamente mais escura, punham- se de frente para o palco improvisado que os separava dos artistas por grades azuis da cor do céu de Brasília.

Do cubículo ocupado pelos artistas, do outro lado das grades azuis da cor do céu do Brasil, era possível ver os rostos, os corpos, as reações. Começo de espetáculo: entram os artistas, trajando roupas que simbolizavam a necessidade de mais delicadeza para a vida.

Inicialmente aparentando hostilidade e incredulidade, os presos reagiram rindo do ator, que subia no palco engradeado, trajando meia arrastão e cinta liga. A seguir, outros artistas, homens, mulheres e gays, com roupas e maquiagem simbolicamente desafiadoras, ocupavam o cubículo, fortemente protegido pelos agentes da Polícia Penal.

Som: logo de cara, começaram a ecoar na voz dos atores dados e fatos cruéis e certamente conhecidos na prática por cada um dos que estava na plateia: “Segundo dados da ONU. A cada 10 minutos uma menina ou mulher é morta por seu parceiro íntimo ou por outro membro de sua família; estatísticas comprovam que são assassinadas 13 mulheres por dia no Brasil; no Distrito Federal a morte de qualquer mulher é considerada feminicídio. No entanto, nos outros estados, assassinatos de mulheres, já antes invisíveis, entram em apuração”, afirmavam os atores em jogral. Reação: claro incômodo e hostilidade nos rostos e corpos dos detentos, com conversação e até as costas voltadas para os artistas.

O palco não se acovardou: depoimento da vida real falava de uma adolescente morta com um tiro por seu companheiro; Brecht ajudava com sua Marie Farrar, a infanticida; uma mulher que matou seu estuprador gritava para a plateia, encarnada na artista de olhos firmes e voz de veludo.

Mais reação hostil, com conversas paralelas do outro lado das grades azuis da cor do céu do Planeta, abafadas pela potente caixa de som, que começou a ecoar mais desafios, com “mulheres de Atenas” e “pedaço de mim”, de Chico Buarque. Até que “ Ilusão (Cracolândia)”, de  Alok e MC Hariel, o funk, começou a mudar o clima.

Muitos detentos põem-se a cantar. Um preso, claramente hostil, sempre encostado numa pilastra, de braços cruzados, queixo projetado para frente e tatuagens realçadas pelo corpo enrijecido, começa a se entregar. A letra da música sai do palco e penetra seus lábios, que não resistem ao significado da realidade provavelmente vivenciada por ele, e os braços se desfazem da dureza inicialmente imposta, e começam a mexer, a balançar, a se entregar ao chamado.

A partir dali os presos pareciam mais atentos aos textos, ainda fortes, que ecoavam das falas femininas vítimas de violência cometidas pelos homens, encarnadas nos artistas do palco cubículo engradeado. “Anjos (Para quem tem fé)”, do Rappa, arrebatava mais presos, que cantavam e pareciam ouvir a tragédia das mulheres encarnadas nas artistas. “Os ninguéns” do funk e da plateia estavam mais atentos. Apesar de um ainda estar de costas.

Até que a fé explodiu com “Consagração”, de Aline Barros e, de pé, louvando, em couro e aos gritos de Aleluia, o arrebatamento foi total. Os presos, totalmente integrados com os artistas, pareciam, por um átimo, não ver mais as grades azuis da cor do céu para onde todos querem se salvar, ao fim da trajetória humana, das dores, dos crimes, das penas, do reconhecimento e da possibilidade de ressignificação. Êxtase total. Ninguém mais de costas para a realidade ou para o palco.

Os textos disponibilizados neste espaço são autorais e foram publicados em jornais e revistas. Eles são a livre manifestação de pensamento de seus autores e não refletem, necessariamente, o posicionamento da instituição.



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