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Sérgio Bruno Cabral Fernandes
Promotor de justiça do MPDFT

O Marechal sempre foi o melhor em tudo. Primeiro da turma desde o jardim de infância até o fim da academia militar. Além da arte da guerra, estudou História, Política, Economia, Direito e Administração. Falava inglês, espanhol e alemão. Acordava todos os dias às cinco da manhã para se exercitar. Corpo são, mente sã!, dizia orgulhoso. 

Todos admiravam sua inteligência e seu extenso acervo de informações. Sua especialidade era História Militar.

A aula mais popular na academia era a palestra do Marechal sobre o golpe de Estado que interrompeu pela primeira vez a longa democracia ateniense, durante a Guerra do Peloponeso.

Com eloquência, narrava como Alcibíades e seus parceiros forjaram justificativas desconectadas da realidade para defender um golpe de Estado naquela ocasião (411 a.C.). Eles argumentavam, por exemplo, que o fraco desempenho de Atenas na guerra era culpa do regime democrático, que este gerava decisões erradas e impulsivas, especialmente porque demagogos pouco qualificados manipulavam o povo. Segundo os insurgentes, era preciso restaurar a forma “original” de governo, na qual uma minoria composta pelos “melhores cidadãos” estaria mais apta a governar o país e, assim, evitar a derrota para Esparta.

Àquela altura da carreira, o Marechal já tinha passado por todos os postos e posições possíveis da estrutura militar. Ganhou tantas medalhas, que se fosse colocar todas de uma vez, em sua farda impecável, não pararia de pé e cairia pra frente.

Só havia uma lacuna em sua carreira: nunca havia participado de uma guerra de verdade. Não por falta de competência, mas por traquinagem do destino. Naquele estágio, o natural seria passar para a trincheira da reserva e vestir o pijama do dever cumprido, podendo transitar de cabeça erguida nas quadras de peteca do clube militar.

Porém, por sua notável inteligência, foi convidado a ocupar um cargo de destaque no governo. Exercia a missão com a mesma disciplina e devoção dos tempos da caserna. Chegava antes da alvorada e era o último a sair. Não deixava nada para ser despachado depois.

Um dia foi convocado para uma reunião importante. A pauta era dúbia: Possíveis saídas para evitar a ruptura democrática. No concreto, discutiria-se maneiras de aquele governo, derrotado nas urnas, permanecer no poder. O Marechal ouvia atentamente as falas dos presentes e tentava processar aquele momento singular. Apesar de todo o conhecimento adquirido nos livros, cursos e treinamentos, não conseguia digerir bem a artilharia de eufemismos que os presentes disparavam. “Preservar a ordem”, “Intervenção Constitucional”, “Manutenção da Democracia”, “Defesa da Liberdade” e “Movimento Patriótico”.

Embora tivesse acumulado um batalhão de informações ao longo da carreira, sentiu-se despreparado para lidar com o cenário sombrio que testemunhava. Percebeu, finalmente, como se travavam as guerras do mundo real. Sentiu-se recruta, inseguro e com medo. E a dupla amiga que poderia lhe estender a mão nesse momento não lhe visitava há tempos. Caráter e prudência nunca foram convocados para a linha de frente na sua brilhante trajetória e acabaram se atrofiando ao longo dos anos.

No fim da reunião, ainda sem assimilar plenamente o que passava, foi indagado se estava de acordo com as deliberações que salvariam a pátria do inimigo imaginário. O Marechal não queria demonstrar insegurança e tampouco insubordinação, por isso manteve os desconfortáveis questionamentos debaixo do quepe e apenas respondeu de forma assertiva e obediente: Positivo!

Um disparo automático de uma palavra destruiu, num só golpe, a longa carreira do menino prodígio, que aprendeu a ler e a escrever com quatro anos e, aos seis, já sabia os afluentes do rio Amazonas e o volume de água do Nilo.

Lamentavelmente, na primeira oportunidade que teve de aplicar todo o conhecimento acumulado na solução de um problema do mundo real, o Marechal tropeçou no cadarço do coturno envernizado e caiu de testa no meio-fio recém-pintado de cal.

O Marechal sabia a matéria, porém decorar fatos da História é diferente de ter consciência histórica. Mais importante do que diferenciar o preto do branco é saber que decisões da vida real envolvem muitos tons de verde, além do familiar oliva.

Sua resposta não foi dada por íntima convicção, mas por falta de coragem. A bravura dos soldados, que tanto gostava ver descrita nos livros, faltou-lhe na hora “H”. Não por grave ameaça, mas por receio de ser abandonado por seus pares. O que inevitavelmente acabou ocorrendo ante o fracasso da empreitada.

No fim, amargurado, deixou de frequentar o clube e os livros sobre guerra. Introspectivo, voltou-se para a literatura. Sua melancólica vaidade era saber de cor trecho da obra de Fernando Pessoa que mais lhe tocava a alma:

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó [fantasia, máscara] que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era, e não desmenti, e perdi-me…

Mas atenção, não olhe para a vida do Marechal com a indiferença soberba de quem tolera um pombo na calçada. Ele é produto de um sistema do qual você e eu fazemos parte.

É um enredo que se repete em diversas arenas, com líderes de todos os matizes. Ministros, empresários, jornalistas, advogados, chefes religiosos, médicos, CEOs e magnatas do mundo tech são, apressadamente, elevados pela sociedade a categoria de sábio, apenas por possuírem um bom conhecimento descritivo, propositivo e conceitual. Porém, embora guardem certo parentesco, inteligência e sabedoria não se confundem.

Sabedoria é como você usa o conhecimento na “hora do vamos ver”. É como você incorpora informações na vida real. É saber converter o que aprendeu em aplicações que melhoram as nossas vidas. É fazer escolhas razoáveis e proporcionais em cenários de incerteza e situações moralmente complexas.

Diferentemente da inteligência, a sabedoria é um conhecimento que emerge da experiência, dos relacionamentos, dos desafios vividos. Não é ter fórmulas prontas, mas sim fazer julgamentos levando em conta o contexto de cada situação. É saber navegar pela incerteza e, mesmo em momentos de turbulência, não perder o discernimento.

É desse tipo de líder que uma sociedade precisa para evoluir.

A complexidade do mundo nunca se mostrou tão evidente. Os problemas relevantes têm múltiplas interconexões. Tudo acontece rápido. O excesso de informações embaça a vista e atrapalha a reflexão.

Conquistas profissionais, capacidade intelectual e sucesso financeiro não compram clareza de pensamento, bom senso e lucidez. Sabedoria só emana quando se consegue transmutar tudo isso em boas decisões, em solução de problemas complexos. Bons líderes são formados por seleção natural, adaptação e evolução e não pela quantidade de linhas no currículo.

O réquiem do Marechal, com ressonância em fatos reais, alerta sobre a importância da formação de nossos futuros líderes. Fundamental para que não tenhamos que repetir o lamento de T.S Eliot, feito em 1934:“Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos em informações?”[1] 

[1] “Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information? — T.S. Eliot, “Choruses from ‘The Rock”, 1934.

Disponível em https://medium.com/@sbrunocf 

Os textos disponibilizados neste espaço são autorais e foram publicados em jornais e revistas. Eles são a livre manifestação de pensamento de seus autores e não refletem, necessariamente, o posicionamento da instituição.

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