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Sérgio Bruno Cabral Fernandes
Promotor de justiça do MPDFT 

Cinco amigos saem do cinema impac. tados com um filme de terror. Um deles, porém, destoava e não conseguia compreender o espanto dos demais. Ele até viu monstros na tela, “mas eram criaturas amistosas, disse. O filme era Alien, porém, o amigo dissonante parecia ter assistido a Monstros S/A, animação da Disney. Ou seja, todos viram monstros, mas para um dos amigos os monstros eram fofinhos. Mesmas imagens, porém, perspectivas completamente divergentes. Por que isso acontece?

A resposta está numa característica essencial da nossa espécie. Nosso dom de ler nas entrelinhas, suprir lacunas, captar nuances, lidar com ambiguidades e conciliar situações contraditórias. Essas habilidades, desenvolvidas ao longo de milhões de anos, permitiram-nos escapar das amarras do pensamento linear e simplista.

Vivemos em tempos de alta velocidade e excessos. Manter a clareza de pensamento nunca foi tão relevante. O raciocínio analítico, que separa um problema em partes menores a fim de facilitar sua compreensão, é extremamente útil. No entanto, o talento humano de enxergar o todo, fazer deduções e inferências é o atributo determinante para solucionar problemas complexos.

Tarefas que são difíceis para seres humanos costumam ser fáceis para computadores. Por outro lado, tarefas que são fáceis para nós, tendem a ser difíceis para as máquinas. Essa constatação foi feita por estudiosos da inteligência artificial (IA) na década de 80 e é conhecida como o Paradoxo de Moravec. É fácil treinar computadores para fazer coisas que normalmente são difíceis para seres humanos - como calcular grandes números ou jogar xadrez - porém é difícil treinar máquinas para fazerem coisas que são banais para nós, como compreender ironias e metáforas. A maioria dessas habilidades está relacionada à capacidade de estabelecer relações entre as coisas e, assim, colocá-las em contexto. A lógica das máquinas, por outro lado, vai na direção oposta. Elas dividem a realidade em fragmentos na tentativa de interpretá-la.

Essa diferença tem grande impacto na solução de problemas complexos. Imagine, por exemplo, um Juiz que precisa decidir se alguém é culpado ou inocente. Há crimes que, por sua natureza, dificilmente deixam “um corpo estendido no chão; , isto é, provas diretas e materiais, como imagens ou testemunhas. Nesses crimes, a prova não está nas peças isoladas, mas sim, no conjunto coerente que elas formam. E essa coerência não é obtida pela qualidade desta ou daquela peça, mas sim, pelo modo como se relacionam. O raciocínio puramente analítico, típico das máquinas, não tem muita serventia aqui. Afinal, quantos fragmentos da realidade (provas) são necessários para condenar ou absolver alguém?

Não há uma definição exata ou uma resposta objetiva para essa pergunta. A solução não está num número cabalístico ou em determinada categoria de prova, mas sim, no contexto. Não se trata de procurar uma peça específica, mas de compreender como se encaixam para formar a imagem completa. Humanos, em regra, são adaptados para desempenhar bem essa tarefa. Mas nem todos fazem uso desse talento.

Um Juiz Ex Machina, isto é, que abra mão da sua aptidão de “ligar os pontos” e tome suas decisões nos moldes dos computadores, espera encontrar a resposta numa prova específica, que resolva facilmente o enigma. É como se ele pegasse cada peça do quebra-cabeça, a levasse aos olhos e depois devolvesse sem encaixá-la nas demais peças.

Em outras palavras, esse juiz cria para si uma espécie de algoritmo mental simplista nos seguintes moldes: havendo flagrante, gravação, confissão ou testemunha condenação. Caso contrário absolvição.

Assim agindo, o juiz Ex Machina tende a ficar cego para o contexto e, por vezes, acaba desconsiderando a própria convicção, quando essa não se enquadra no algoritmo mental que elegeu para tomar decisões. Reduzir a decisão de um caso complexo à mera aplicação de um algoritmo, contrariando o próprio convencimento, aproximaria-nos das máquinas no que elas fazem de pior.

O convencimento do juiz humano, portanto, não vem da análise individual de cada prova, mas sim, da imagem que surge quando essas provas são conectadas umas às outras. Esse produto que emerge do todo é algo diferente do resultado obtido da mera adição das partes. Um filme, por exemplo, não é um acúmulo de fotografias estáticas. É algo diferente. Do mesmo modo, a convicção do juiz humano não resulta de uma prova específica, mas sim de um enredo que só pode ser compreendido quando visto no seu contexto dinâmico.

Mais uma vez, contexto é tudo. É ele quem cria significado para as coisas. Especialmente em casos complexos, em que as interconexões produzem informações não existentes em cada peça isolada. A cor verde só emerge quando amarelo e azul interagem. Provas e indícios conectados por um mesmo contexto ganham outro colorido.

Por sua vez, monstros apartados do enredo do filme, vistos de modo estático na prateleira, de fato não passam de inofensivos bichinhos de pelúcia.

Correio Braziliense - 18/9/2025

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