Rogerio Schietti Machado Cruz
Procurador de Justiça do MPDFT
Entrou em vigor, em 10 de agosto, a Lei nº 12.015/09, que dá um novo tratamento às infrações penais que passa a denominar “Crimes contra a Dignidade Sexual”, em substituição à vetusta expressão, “Crimes contra os Costumes”, cunhada no Código Penal de 1941. Dentre tantas modificações legislativas, o destaque principal vai para a eliminação da ação penal privada para punir os referidos crimes.
A inovação é extremamente positiva, porque desonera o particular - seja a própria vítima, seja seu representante legal - da tormentosa decisão de processar e punir o autor de tão graves crimes. Até o dia 10 de agosto, vigia uma visão privatista do processo, segundo a qual, para não se expor a vítima e seus familiares ao escândalo decorrente da agressão sexual, deixavam-se impunes crimes que a Constituição Federal classifica como hediondos. É dizer, mesmo quando se sabia quem era o autor de um estupro, a regra era a de não permitir ao Estado o direito de investigar, processar e punir o criminoso, a menos que assim o desejasse a vítima do delito.
A norma revogada criava uma curiosa discriminação entre ricos e pobres, dizendo que somente estes últimos podiam, quando da agressão sexual não resultassem lesões corporais, socorrer-se do Ministério Público para propor a ação penal contra o agressor. Impunha-se, desse modo, ao ofendido pela grave violação à sua liberdade sexual o pesado ônus, financeiro e moral, de movimentar toda a máquina punitiva do Estado, apenas porque se tratava de pessoa com recursos financeiros, como se o Estado fosse obrigado a prestar jurisdição penal somente para os pobres.
De outra angulação, e ainda sob essa nova política criminal, a punição de quem, por exemplo, viola a liberdade sexual de uma criança (com ou sem violência física), não mais vai depender, como ocorria, da iniciativa dos pais dela, os quais nem sempre acham conveniente levar o caso adiante, pelos motivos mais variados possíveis, alguns compreensíveis, outros condenáveis.
Finalmente, compreendeu o Estado a gravidade do problema e deu o primeiro passo para cumprir a Constituição Federal, quando esta, conferindo à criança e ao adolescente proteção digna de um assunto prioritário, determina, em seu artigo 227, § 4º, que a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
A mudança da titularidade da ação penal reduzirá, sensivelmente, o número de casos impunes, principalmente quando envolverem menores. A uma, como enfatizado, porque os crimes contra a liberdade sexual de adolescentes e crianças passam a ser um dever do Ministério Público, e não mais uma mera faculdade dos representantes legais da vítima; a duas, porque a acusação, sendo movida por um órgão do Estado, tecnicamente preparado para exercer esse mister – e não por um advogado, acostumado a atuar do lado oposto, a defesa dos réus –, possui chances muito maiores de êxito.
Em contraponto, a Lei nº 12.015/09 parece incorrer em vício de inconstitucionalidade, ao dispor que os crimes mais graves, “se cometidos de modo generalizado ou sistemático”, são imprescritíveis. Ora, por mais repudiáveis que sejam esses comportamentos criminosos, não se incluem eles entre aqueles que a Constituição da República considera imprescritíveis (art. 5º, incisos XLII e XLIV), sendo vedado, portanto, o alargamento do rol excepcional.
Ademais, o legislador desperdiçou a oportunidade de corrigir uma das maiores anomalias jurídicas de nosso Código Penal, cujo artigo 273 iguala, em reprovabilidade, a conduta de quem adultera produto terapêutico, como um xampu anticaspa, com a conduta de quem falsifica um medicamento usado para combater uma patologia grave, como o câncer. Isso significa que o farmacêutico, por adicionar água ao xampu exposto à venda, irá aumentar a caspa de sua cliente, sendo punido, por isso, com uma pena mínima de 10 anos de reclusão, bem maior do que a sanção que receberia se decidisse estuprar ou até matar essa cliente. Como dizia o personagem Jack Palace, da Ilha da Fantasia, “acredite se quiser.”
Sem embargo, a nova lei, só pelo abandono da ação penal de iniciativa privada, é merecedora de elogios, por eliminar importante fator de impunidade dos crimes cometidos contra crianças e adolescentes.
Correio Braziliense