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Sergio Bruno Cabral Fernandes 
Promotor de justiça do MPDFT

Imagine um sujeito preguiçoso, incompetente, avesso ao trabalho e que, justamente por isso, odeia as segundas-feiras. Seu sarcasmo superficial confere-lhe uma falsa aura de genialidade, ocultando um grande vazio intelectual.

 Essas características não permitem que esse indivíduo construa uma carreira profissional ou exerça atividade produtiva com competência. Apesar disso, ele ocupa um alto cargo público no governo, conseguido em razão de uma relação de parentesco.

O nepotismo gera indignação na maioria das pessoas, especialmente porque hoje o conceito de república está aderido ao inconsciente coletivo. O uso privado do patrimônio público viola a ideia de um estado republicano. República, em linguagem simples, significa que todos os bens e serviços do Estado (incluindo os cargos) pertencem ao povo e devem ser usados no interesse público.

Atualmente, o nepotismo é vedado para a maioria dos cargos (cf. Súmula 13 do STF). Mas ainda se discute se a proibição valeria para cargos de natureza política, como secretário de Estado ou ministro.

Quando tentamos consertar um problema atacando apenas seus efeitos, sua verdadeira causa tende a ter vida longa. Qual a causa do problema descrito? Uma resposta rápida e linear seria: a relação de parentesco entre o nomeado e a autoridade que o nomeou. Será mesmo?

Troque o parente por um apoiador político sem qualificação. Sua nomeação para um alto cargo não se baseia em preparo técnico ou aptidão para a missão pública. Ela ocorre exclusivamente porque ele prestou serviços privados ao agente político durante a campanha. O que muda agora é que esses serviços serão financiados pelo erário.

Essa segunda situação provavelmente causa repulsa similar à primeira. Em comum, elas têêm o uso de um cargo público para satisfazer um interesse pessoal. Todavia, repare que a retirada da “relação de parentesco” da hipótese não eliminou o problema e, portanto, não é sua causa. Causa é aquilo cuja supressão elimina o efeito.

A proibição do nepotismo combate a consequência, ou seja, ataca o “efeito colateral” do problema. Não está errado. Quando alguém está doente, é preciso controlar a febre alta. Porém, não se deve confundir tratamento com cura. É importante saber que o parentesco não é a causa do problema.

A partilha de cargos para uso privado, feita pelo grupo político vencedor das eleições, nos moldes como os antigos piratas faziam com o butim após saquear um navio, é hábito centenário.

Nos Estados Unidos, berço do republicanismo moderno, esse costume era chamado de “sistema de espólios” (Patronage). Até o final do século XIX, a nomeação para cargos públicos com base no mérito era a exceção. A maioria das posições governamentais, do carteiro ao chefe da alfândega, era rateada dentro do grupo vencedor.

Essa prática perdurou indiscriminadamente até a chegada do Garfield, que apesar do nome, nada tinha contra as segundas-feiras e nunca provou uma lasanha.

James A. Garfield foi eleito presidente dos EUA em 1881 e, quebrando a tradição, recusou-se a fazer nomeações apenas por critérios clientelistas. A atitude encontrou enorme resistência e criou uma guerra entre duas facções do Partido Republicano.

Um dos integrantes da ala que apoiava a continuidade das nomeações apenas por critérios partidários (os Stalwarts) levou seu inconformismo ao extremo. Em 2 de julho de 1881, numa estação de trem em Washington-DC, Charles Guiteau desferiu dois tiros pelas costas no presidente eleito. Garfield havia se recusado a nomear Guiteau embaixador em Paris.

Curiosamente, Garfield não morreu pelos ferimentos. A causa principal de seu desfecho foi uma mistura de incompetência com ignorância. O uso de instrumentos não esterilizados em sua cirurgia causou-lhe uma septicemia que o matou 79 dias após os disparos. A Teoria do Germes, desenvolvida por Pasteur e Koch, já havia sido comprovada à época, porém ainda encontrava grande relutância entre os médicos, que resistiam a ideia de esterilizar mãos e instrumentos, pois não acreditavam que a causa de infecções e doenças pudesse ser minúsculos germes e micróbios.

O crime catalisou a reforma do serviço público e o Congresso aprovou a Lei Pendleton (Pendleton Civil Service Act), exigindo que as nomeações fossem baseadas no mérito, aferido em exames públicos, e não por favoritismo político.

O problema que se busca resolver ao proibir a prática do nepotismo não é a mera nomeação de parentes (isso já é a infecção), mas sim, a apropriação dos bens públicos para uso particular. Usar um cargo público para satisfazer uma necessidade ou capricho privado é o que contamina o princípio republicano. O nepotismo é apenas a modalidade mais inflamada dessa prática. Porém, não é a mais perniciosa.

A repartição de cargos entre os integrantes do grupo que ocasionalmente vence uma eleição, com a consequente nomeação de pessoas cujo papel é apenas defender interesses do grupo político, é o germe difícil de ver a olho nu, mas que tem o poder de causar a infecção generalizada do Estado. O clientelismo político é a causa primeira dos principais problemas estatais. É o Big Bang da corrupção, a gênese da incompetência e o prelúdio da ineficácia governamental.

O único meio de imunizar o corpo estatal é a meritocracia. O concurso público é uma medida cientificamente comprovada para a melhora de diversas pragas infecciosas que circulam na esfera pública. No entanto, pela arquitetura administrativa do Estado, alguns cargos públicos podem ser ocupados sem a exigência dos exames. Isso, contudo, não significa uma permissão para dispensar a seleção por mérito.

E aqui reside um ponto fundamental rotineiramente ignorado. Para qualquer cargo, as nomeações devem ser feitas para atender ao interesse público. Os “cargos de confiança” (apelido dos cargos de livre nomeação) não se referem a uma relação de confiança que o agente político eventualmente tenha na sua vida privada. A confiança aqui é no sentido de que a pessoa escolhida diretamente - excepcionalmente sem concurso - irá atuar com integridade na defesa do interesse público. Ou seja, quem deposita a confiança no nomeado é a sociedade, verdadeira dona do cargo, e não a pessoa que eventualmente o nomeia.

Da mesma forma, a referência à “livre nomeação” desses cargos não significa dizer à pessoa que nomeia “faça o que tu queres, pois há de ser tudo da lei' Não. Essa é uma liberdade que tem limites. A escolha do ocupante desse cargo é livre dentro de uma moldura desenhada pelos princípios constitucionais. Impessoalidade, Moralidade e Eficiência exigem que o candidato tenha capacidade técnica, lealdade ao interesse público e reputação condizente com o exercício do cargo.

Pessoas incompetentes, com antecedentes criminais e que odeiam trabalhar às segundas-feiras, não atendem aos requisitos mínimos exigidos para o exercício de um cargo público de livre nomeação. Gostar de lasanha, por outro lado, é opcional.

Correio Braziliense - 23/10/2025

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